O material apresentado nesta seção do Blog, deve ser lido e considerado em seu contexto histórico e sua relevância para a formação do pensamento social, político, e até o teológico da sociedade moderna e dos diversos momentos da história da humanidade. Isto, entretanto, não significa dizer que subscrevo todas as idéias contidas nos textos e livros aqui publicados, mas apenas que reconheço a importância que exerceram e exercem sobre a história de todo o pensamento ocidental. Creio que todos terão o discernimento e filtro característicos daqueles que possuem a mente de Cristo, levando ainda, em consideração, o ensinamento de 1 Tessalonicenses 5:21 - Examinai tudo. Retende o bem.


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segunda-feira, julho 10, 2006

O GARFO DE HUME - Como Espetar Disparates

Este é o 12º artigo desta série. Os quatro últimos são:

08 - A Navalha de Occam
09 - O Príncipe de Maquiavel
10 - As Galinhas de Bacon
11 - O Demônio de Descartes



Decifrar o caráter das pessoas é um passatempo favorito de todos os que se têm na conta de inteligentes. Segundo o mito popular você pode descobrir o “verdadeiro caráter” de alguém pelo modo como se veste, como cumprimenta, como ri ou como reage numa crise. Por mais inócuo que seja um maneirismo – um jeito de acender um cigarro, a maneira de dobrar um lenço -, haverá sempre quem professe ver nisso o modo de vida de outra pessoa. A confiança com que essas regras são afirmadas é geralmente inadequada, e a idéia de que conhecê-las bem constitui a sabedoria da idade é bastante risível. Os que pretensamente conhecem as pessoas dessa maneira meramente aceitam um conjunto de mitos. As perspectivas de uma ciência de caráter humano não são sombrias apenas porque – como observou o filósofo Alasdair MacIntyre – nosso desejo de tornar os outros previsíveis é compensado por nosso desejo de nos tornarmos imprevisíveis para o outro. Segundo MacIntyre (1929 -), há uma razão mais profunda para que todo indivíduo permaneça um enigma para os outros, e trata-se de uma razão que atinge muito mais que o comportamento humano – o fato de que nada prova coisa alguma exceto a si mesmo. O modo como alguém reage em uma crise revela apenas o modo como reage em uma crise; o modo como dobra um lenço mostra apenas o modo como dobra um lenço, e mais nada.

Essa percepção foi a base da obra do filósofo escocês David Hume. Ele acreditava na capacidade que tinha a ciência de compreender o mundo, mas não se isso significasse que ela descobriria toda e qualquer conexão logicamente necessária entre as coisas. Podemos falar de uma maçã que caiu de uma árvore e atingiu a cabeça de alguém que dormia embaixo, mas não podemos mostrar que o primeiro evento tinha de levar ao outro. A necessidade, afirmou Hume, era exclusiva do mundo da matemática e da geometria. Em se tratando dos objetos de nossos sentidos, tudo é contingente e seria insensato sugerir outra coisa. Podemos investigar e registrar novos fenômenos, mas é da natureza desses fenômenos serem independentes. Isto é, nada pode ser inferido deles que não diga respeito à natureza deles próprios. Eles não podem “apontar” para verdades fora de si mesmos para nos poupar o trabalho de mais experimento e investigação. Segundo Hume, não há atalho na busca do conhecimento.

Hume nasceu em Edimburgo, em 1711. Perdeu o pai, dono de uma propriedade muito modesta na aldeia escocesa de Chirnside, aos três anos de idade. Com o irmão e a irmã, foi criado com muito cuidado pela mãe Catherine, que tratou de lhes assegurar uma boa formação. David foi para a Universidade de Edimburgo aos doze anos e ali estudou por três anos. Sua carreira começou com investidas frustradas no campo do comércio e da advocacia. Ele dizia que a advocacia o fazia se sentir “repugnante”. Se o direito perdeu, a filosofia ganhou, embora esta não o tenha reconhecido de imediato. Em 1734, Hume estava convencido de que o melhor a fazer com sua vida seria devotá-la à filosofia. Então auto-exilou-se na França, onde passou três anos construindo um sistema filosófico completo, o Tratado da Natureza Humana. A obra era deliberadamente provocativa e seu autor estava ansioso para rebater as críticas que, esperava ele, se seguiriam à publicação. O Tratado, no entanto, “caiu natimorto das prensas”, para usar suas palavras, e não despertou nenhum interesse, muito menos controvérsia. Hume passaria grande parte do resto de sua vida expressando as mesmas argumentações numa roupagem mais atraente, com muito mais sucesso.

A mãe de Hume descreveu certa vez o jovem David como uma alma de boa índole, mas não muito bom da cabeça. Referia-se à sua constituição mental, não à sua inteligência, já que os esforços intelectuais precoces do rapaz o haviam levado a um colapso nervoso aos dezoito anos. Catherine estava certa quanto à natureza amável do filho, pois ele parece não ter tido nenhum inimigo em sua vida pessoal, exceto o paranóico e impudente Jean-Jaqcues Rousseau (1712-1778). As coisas foram bem diferentes em sua vida profissional, atormentada por acusações de heresia e ateísmo. Uma história fala de uma velha que topou com Hume atolado até a cintura em um profundo lamaçal. Ela só se dispôs a puxar o filósofo para fora se ele antes rezasse o Credo Apostólico e o Pai-Nosso.

Muitos clérigos, mesmo discordando das idéias de Hume, tornavam-se seus amigos porque lhe parecia impossível não apreciá-lo. Foi em virtude de suas opiniões religiosas, porém, que a cátedra de filosofia moral na Universidade de Edimburgo lhe foi negada em 1744. Ele deixou a cidade na esteira dessa decepção para assumir o posto promissor de preceptor de um aristocrata inglês. Infelizmente o marquês de Annandale, “o Louco”, era não só impenetrável a todo tipo de ensinamento como completamente maluco e o filósofo se livrou do emprego um ano depois. Em 1746, assumiu um cargo mais compensador como secretário do general James St. Clair, com quem assistiu a manobras militares na Bretanha e viajou em missão para Viena e Turim. Esse encargo valeu-lhe o esplêndido uniforme escarlate que ele enverga em seu mais famoso retrato e o cargo posterior de secretário do embaixador britânico em Paris durante três anos. A Paris literária foi pródiga em louvores ao filósofo. Ali ele travou amizade com Rousseau e, ao deixar Paris, levou-o consigo para a Inglaterra, para pô-lo fora do alcance de seus “inimigos”. A insanidade de Rousseau prevaleceu sobre a sua gratidão e ele repudiou seu salvador, acusando Hume de trama sua morte. Havia assassinos mais prováveis que o sereno Hume, que permanecia leal mesmo quando traído. Talvez Rousseau fosse pouco convencional até em sua loucura e tivesse passado a julgar mais, em vez de menos, pelas aparências. James Caulfield, conde de Charlemont, escreveu sobre Hume:

“Seu rosto era largo e gordo, a boca ampla, e sem qualquer expressão senão a da imbecilidade. Seus olhos eram vazios e inexpressivos e a corpulência de toda a sua pessoa era muito mais apta a comunicar a idéia de um burgomestre glutão que a de um filósofo refinado. Sua fala, em inglês, era ridícula por força do mais carregado sotaque escocês, e seu francês era, se possível, ainda mais cômico; de modo que a sabedoria, com toda certeza, nunca se disfarçou em tão desgraciosa roupagem”.

Hume acabou voltando para Edimburgo. Não havia outra cidade na Europa, segundo ele, em que pudesse, em poucos minutos, encontrar cinqüenta homens de gênio e saber. Em 1776, uma doença gástrica que o afligira por muitos anos entrou em fase final e ele observou: “Estou morrendo tão depressa quanto meus inimigos, se é que tenho algum, poderiam querer, e tão fácil e alegremente quando meus amigos poderiam desejar”.

Hume reservava sua famosa tolerância para os assuntos pessoais. Em filosofia, era menos condescendente. Tinha pouco tempo para especulação abstrata sobre matérias que considerava incognoscíveis. Em sua opinião, havia penas dois assuntos passíveis de investigação: relações entre idéias e relações entre fatos. As primeiras diziam respeito à geometria e à aritmética. Que 2 vezes 6 sejam 12 expressa uma relação entre esses números que pode ser descoberta por puro pensamento, sem recurso à nossa experiência do mundo. Da mesma maneira, podemos provar que os ângulos internos de um triângulo euclidiano somam 180 graus sem conferir nossos números com um triângulo desenhado em um quadro-negro. Podemos considerar um resultado matemático certo porque negá-lo seria contradizer-se. Uma verdade desse tipo pode ser demonstrada sem que deixemos nossa poltrona. O modo como procedemos para provar matérias factuais, por outro lado, é muito diferente. É possível afirmar o contrário de qualquer matéria de fato contingente sem criar contradição. A possibilidade de que o Sol não se levante amanhã é sob todos os aspectos tão concebível quanto a de que se levante da maneira habitual. Para decidir a questão é necessário sair ao mundo e consultar nossa experiência. Para assuntos que não podem ser decididos nem por raciocínio matemático nem por observação empírica, Hume sugere um veredito simples. Conhecido como “o garfo de Hume”, ele estabelece:

“Quando reviramos bibliotecas, convencidos desses princípios, que devastação devemos fazer? Se tomamos nas mãos qualquer volume, de teologia ou metafísica escolástica, por exemplo, perguntemos: Contém ele algum raciocínio abstrato referente à quantidade ou número? Não. Contém algum raciocínio experimental referente à matéria de fato e existência? Não. Mais vale pois entregá-lo às chamas: nada pode conter senão sofismas e ilusão”.

Hume lançaria uma porção de nossas inferências de sendo comum à fogueira; entre elas nossa crença de que há um eu no âmago de uma pessoa, de que há leis observáveis da natureza e de que há um mecanismo de causa e efeito no mundo. Essas são coisas a que atribuímos necessidade – pensamos que a percepção exige um sujeito que perceba, que regularidades exigem leis e que conseqüências exigem causas. Hume afirmaria que injetamos um elemento não autorizado na descrição delas. Temos percepções, mas não as vemos sendo percebidas. Observamos regularidades na natureza, mas não observamos leis da natureza. Vemos um evento seguir um outro, mas não vemos um evento causar um outro, isto é, exigi-lo. Assim, erguemos o braço para chamar táxis, mas não observamos a operação de nossa vontade sobre nosso braço. Podemos ter a intenção de acenar para um táxi que passa, mas essa intenção não faz nosso braço se mover, pois poderíamos mudar de idéia no último instante. Passado esse último instante, não temos intenção nenhuma de erguer o braço – simplesmente o erguemos. No entanto, estamos habituados a tomar uma série de fatos e deles inferir um outro fato. Vemos uma bola branca batendo em uma vermelha que em seguida cai na caçapa e pensamos que o primeiro evento causou o segundo. Por “causou”, entendemos que a conseqüência tinha de se seguir por necessidade. Essa necessidade não é ela mesma, contudo, algo que observamos. Vemos a primeira bola bater na segunda, e depois esta última se mover para a caçapa, mas isso é tudo que vemos – portanto, a necessidade não pode ser um fato comum do tipo que podemos observar diretamente. A necessidade tampouco pode ser uma relação entre idéias, porque é concebível que a bola vermelha tivesse ficado parada onde estava e feito abranca recuar, por exemplo. Poderíamos inferir a conseqüência se quiséssemos, mas o faríamos apenas com base no que geralmente ocorre em um jogo de sinuca ou bilhar. Nossa crença na necessidade iminente não se baseia em absoluto em razões; é simplesmente um hábito que adquirimos por observar freqüentemente um evento seguir outro.

Embora nossas experiências com bolas brancas expliquem nossas expectativas, estritamente falando não as justificam. Hábitos não são o tipo de coisa que possa ser justificado. Eles podem se tornar mais arraigados, mas não se tornam mais bem fundamentados cada vez que as expectativas que geram são realizadas. A experiência, continua Hume, mostra-nos apenas que um evento acompanha outro constantemente. Não nos mostra nenhum vínculo secreto que torne os dois inseparáveis. Se mostrasse de algum modo esse vínculo, o vínculo se tornaria um fato novo – seria tão inerte quanto os dois primeiros eventos e continuaria carecendo de uma outra conexão oculta para vinculá-lo aos outros. Poderíamos, por exemplo, examinar atentamente o que acontece quando a bola branca colide com a vermelha e ver a superfície desta contrair-se e expandir-se de novo, propelindo-a, mas nesse caso teríamos apenas descoberto um novo fenômeno e não necessariamente uma conexão de qualquer tipo. Se pudéssemos assistir ao movimento da bola branca causando o da vermelha, isso significaria que seria inconcebível que o segundo evento não se produzisse - e não é esse o caso (como nunca é em se tratando dos eventos do mundo).

É possível atribuir necessidade à verdades matemáticas porque elas não nos dizem nada substancial sobre como são as coisas no mundo. Duas vezes 6, por exemplo, continuam sendo 12, mesmo que os objetos nunca ocorram de fato em dúzias. A matemática pode lidar com a necessidade porque suas respostas são garantidas pelo significado de suas perguntas. Da mesma maneira, celibatários são sempre homens solteiros e esposas são necessariamente casadas. A afirmação “Todos os celibatários são homens solteiros” é necessariamente verdadeira porque é uma tautologia, e alguém que a negasse estaria simplesmente compreendendo mal as palavras da frase. O pensamento de Hume é que as verdades da matemática são tautologias vestidas a rigor. Infelizmente, tautologias são de pouca utilidade na avaliação do caráter de estranhos ou na previsão do resultado de jogos de futebol.

Nada disso significa que nossas fortes expectativas com relação ao curso do mundo não possam vir a se revelar corretas – na verdade, em geral são corretas, ou não as teríamos, para início de conversa. Significa, contudo, que o fundamento de nossas expectativas encontra-se no hábito, não na razão.

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