A CAVERNA DE PLATÃO - O uso da Analogia e da Alegoria
Em junho de 1998, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos iniciou uma ação judicial contra a Microsoft Corporation, alegando que sua decisão de incluir um navegador da Internet no Windows 98, o novo sistema operacional para PCs de então, infringia leis antitruste. No Wall Street Journal de 10 de novembro de 1997, o diretor executivo da Microsoft, Bill Gates, usou uma analogia muito disseminada para explicar por que sua companhia não deveria ser forçada a eliminar aquela característica. “Duvido que o New York Times permitisse a uma banca de jornais rasgar a seção de negócios do jornal só por querer vender mais Wall Street Journals. Ou que a Ford Motor Company deixasse seus concessionários trocarem um motor Ford por um Toyota em seus automóveis”.
Resta saber se a comparação do Sr. Gates foi justa. Na opinião do Departamento de Justiça, não foi. As medidas que ele imaginou não se aplicavam a jornais ou automóveis porque nenhuma companhia tem um monopólio virtual nessas indústrias. Rasgar páginas do Wall Street Journal prejudicaria a capacidade do jornal de competir com seus rivais. Todo o sentido do processo antitruste movido contra a companhia de Gates, por outro lado, era que a inclusão gratuita de um navegador no pacote do software impedia outros fabricantes de navegadores de competir com a Micrososft. A analogia não resiste a um exame mais atento dos fatos, mesmo que à primeira vista soe procedente. Às vezes é fácil deixar-se seduzir por uma comparação elegante que aproxima uma coisa de outra erroneamente. O fato de algo soar adequado não o torna verdadeiro, é claro. Por essa razão, a tradição filosófica ocidental – para não mencionar os sistema jurídico – confere preponderância a argumentos lógicos sobre analogias, relegando estas últimas a um papel sobretudo ilustrativo. A idéia é que se algo pode ser adequadamente demonstrado pelo uso da lógica e dos fatos disponíveis, as analogias se tornam desnecessárias.
Quando explicações literais não convencem, os filósofos recorrem a analogias, alegorias e metáforas. Por vezes o fazem porque uma comparação adequada pode transmitir uma idéia de maneira muito mais rápida e fácil. Se, por esse fim, uma imagem vale mais que mil palavras, uma analogia pode valer mais que muitos argumentos. Por exemplo, a idéia de que nossos pensamentos e emoções podem ser explicados por referência ao funcionamento de nossos cérebros é uma das teorias mais fortemente defendidas, embora seja intuitivamente não convincente, da filosofia atual. Por mais forte que seja a defesa da idéia de que a consciência é um produto do cérebro e não, digamos, de uma alma imaterial, continua sendo desconcertante que pensamentos e emoções intangíveis possam ser formados pelos conteúdos decididamente materiais do crânio. Talvez a perplexidade ocorra por estarmos usando não a idéia errada, mas a imagem errada. Se imaginarmos o cérebro engendrando uma profusão de pensamentos como uma máquina fabrica-bugigangas, somos forçados a perguntar como os produtos podem ser tão diferentes do aparelho que os criou. As coisas ficam mais claras, porém, se imaginarmos que o cérebro trabalha como um tipo especial de máquina: um computador. O filósofo americano Hilary Putnam (1926-) sugeriu que os cérebros são os “discos rígidos” que rodam os “softwares” da consciência, assim como os PCs são os discos que rodam os programas de computador. Embora essa analogia por si só não prove coisa alguma – resta demonstrar se nossos cérebros realmente funcionam ou não dessa maneira -, ela nos permite compreender melhor como um processo de outro modo ininteligível poderia operar.
Idealmente, contudo, comparações são mais que meros auxílios para a compreensão. A palavra analogia, tomada do grego, significava originalmente igualdade de razões ou proposição. Quando usamos analogias em apoio a uma alegação, tomamos duas coisas ou processos que, embora diferentes, têm uma estrutura, forma ou outra característica em comum. Após uni-las dessa maneira, tomamos uma outra qualidade da primeira coisa e inferimos que a segunda coisa também a possui em virtude daquele primeiro traço que as duas partilha. Por exemplo, o filósofo e pastor anglicano inglês William Paley (1745-1805) tentou provar a existência de Deus chamando a atenção para a beleza e a ordem presentes no mundo natural. A natureza é tão intricada, ele sustentou, que evidencia a mão de um projetista. No cerne da argumentação de Paley estava sua famosa analogia do relógio. Se você topasse com um relógio numa praia, não o tomaria por um tipo estranho de seixo que tivesse sido erodido pela água – pois uma coisa como aquela não poderia ser fruto do acaso. Você inferiria que aquilo certamente fora criado por um relojoeiro. Como os processos da natureza exibem igual complexidade e precisão, também eles implicam um artífice. Inferências desse gênero nunca serão infalíveis, pois envolvem especulação sobre matérias que não testemunhamos diretamente. Se pudermos aceitar isso, podemos pelo menos admitir que as analogias nos apontam a direção em que procurar nossas respostas. A analogia de Paley era convincente e exigiu uma resposta séria de seus opositores. Sem dúvida, no caso de um relógio, seria possível abrir o estojo e procurar a inscrição “Made in Switzerland”, ao passo que não é assim tão fácil discernir a marca registrada do céu no mundo natural. Apesar disso, a ordem manifesta neste último é tão impressionante quanto a de qualquer produto mecânico, sendo igualmente improvável que tenha surgido por obra do puro acaso. Por causa dessa equivalência, faz-se necessária uma explicação para o “projeto” que se evidencia na natureza, que a busquemos em Deus ou não. Nesse sentido, Charles Darwin (1809-1882) foi capaz, mais tarde, de mostrar que a complexidade das espécies terrenas poderia ter surgido sem a intervenção consciente de uma divindade – mediante a evolução por seleção natural. Richard Dawkins (1941-), biólogo evolucionário e tema de um artigo posterior dessa série, intitulou um livro segundo esse processo, O Relojoeiro Cego.
Se a seleção natural tivesse sido descoberta antes da invenção dos relógios de pulso, teríamos podido concluir que a peça encontrada na praia evolvera da mesma maneira que os animais e as plantas. Podemos imaginar um cético negando a existência de artesãos suficientemente habilidosos para produzi-la. “Assim como não houve a intervenção de uma inteligência consciente na criação dos homens e dos animais”, diria ele, “tampouco deveríamos imaginar que foi uma inteligência semelhante que moldou esse estranho objeto metálico”. O que isso mostra é que as conclusões extraídas por analogia devem ser tratadas como provisórias. Deveriam ser vistas como o ponto de partida para uma investigação mais profunda, não como seu fim.
Em filosofia, a diferença entre o uso de analogias para provar uma idéia, por um lado, e simplesmente para elucidá-la, por outro, ficou muitas vezes esmaecida. Os diálogos de Platão estão entre as obras filosóficas de leitura mais agradável no cânone, e isso se deve em parte à sua riqueza em símiles e metáforas. Nascido em 428 a.C. Platão era o caçula de uma família ateniense rica e famosa. Consta que seu verdadeiro nome era Aristocles – “Platão” ou “Platon” sendo um apelido derivado da largura ou de seus ombros ou de sua testa. Quando jovem, recebeu a educação padrão de que desfrutavam os jovens aristocratas e tornou-se um lutador campeão, bem como exímio músico e poeta. Com muita aptidão para atividades físicas, serviu no exército ateniense entre 409 e 404 a. C. no final da Guerra do Peloponeso com Esparta. Depois da guerra, abraçou a causa dos Trinta Tiranos, a oligarquia estabelecida em Atenas em 404 a.C. Embora um dos líderes desse grupo fosse seu tio Carmides, as violências por ele cometidas logo levaram Platão a se afastar. Um ano depois, quando a democracia foi restaurada, Platão já abandonara suas ambições políticas. Essa decisão foi confirmada pela execução de seu mestre Sócrates em 399 a.C., após a qual viajou pelo Egito, a Itália e a Sicília. Depois passou um outro período no exército, durante o qual consta ter sido condecorado por bravura em combate. Concluindo que sua influência política viria do ensinamento e não do exemplo, em 387 a. C. Platão fundou a Academia, uma escola dedicada à ciência e à filosofia, que se reunia no jardim de Academo. O objetivo da escola era ser um viveiro de futuros estadistas que, Platão esperava, fariam melhor serviço que seus antecessores. Embora seu fundador tenha morrido aos oitenta anos, a Academia perdurou por quase nove séculos, até ser condenada como um estabelecimento pagão e fechada pelo imperador cristão Justiniano. Na realidade, Platão teve uma oportunidade de exercer influência mais direta sobre sua época. Quando o soberano de Siracusa, Dionísio I, morreu, ele aceitou, um tanto a contragosto, o convite de Dion, cunhado do ex-soberano, para ser o preceptor de Dionísio II. O plano malogrou quando o novo soberano expulsou Dion de Siracusa. Platão foi preso e depois vendido como escravo – condição de que teve de ser resgatado por um amigo.
Depois de seu primeiro encontro com o grande Sócrates em 408 a.C., quando tinha vinte anos, Platão queimou publicamente os poemas que escrevera e jurou seguir uma vida filosófica. Como prova de sua dedicação, afirmou certa vez que escolhera morar numa rua habitada por ourives; assim, quando a sonolência começasse a lhe anuviar os pensamentos, seria despertado pelas ferramentas dos artífices. Logo se provou o discípulo mais capaz de Sócrates, cujas idéias absorveu e desenvolveu extensamente em seus diálogos. Ele próprio, Platão, não figura nesses diálogos e como têm sempre Sócrates como protagonista, por vezes é difícil discernir se as idéias neles expressadas pertencem ao mestre ou ao discípulo. Há alguns indícios de que Sócrates ficava perplexo com a maneira como Platão o representava, e que uma vez teve um sonho em que seu protegido se transformava em um corvo, pulava em sua cabeça e lhe bicava a careca. A visão de consenso é que a teoria das formas, que serve de base a muitas das argumentações nos diálogos de Platão, pertence fundamentalmente ao próprio Platão, não a Sócrates. Essa teoria, segundo a qual o mundo físico das imagens e impressões é uma pálida imitação de um mundo mais elevado de conhecimento e verdade, lança mão do princípio da analogia. Sob seus termos, não podemos conhecer coisa como árvores e animais, já que o mundo das aparências que elas povoam não se presta a um conhecimento propriamente dito. Na visão de Platão, só podemos conhecer realmente aquilo que é verdadeiramente real, e esse critério só é satisfeito por objetos perfeitos e imutáveis. Em algum lugar, ele afirmava, existe uma árvore ideal que fixa o padrão, e é dela que as árvores comuns derivam sua forma. Essa árvore ideal é também o objeto a que aludimos em nossa fala cotidiana sobre árvores. No que diz respeito aos carvalhos e plátanos comuns dos parques e florestas, temos com eles uma relação que é inferior ao conhecimento, mas análoga a ele - isto é, meramente os percebemos. Podemos, contudo – com a formação filosófica apropriada -, adquirir conhecimento sobre os correspondentes das árvores e dos animais que residem no mundo da verdade eterna. Enquanto as percepções podem ser embaçadas ou errôneas, todo conhecimento desse domínio mais elevado seria perfeito e nunca passível de correção.
Para descrever nossa relação com o mundo da verdade, Platão lançou mão de uma das analogias mais famosas da filosofia ocidental: o mito, ou alegoria da caverna. Em sua obra-prima, A República, pede-nos para imaginar homens aprisionados numa caverna, sem nunca terem visto o mundo exterior. São mantidos acorrentados e de costas para a entrada, sequer podendo mover a cabeça para se voltarem e se verem uns aos outros ou a luz do dia atrás de si. Um fogo é mantido aceso na entrada da caverna, e as pessoas que passam diante dele projetam sombras de si mesmas e de suas cargas sobre a parede à frente dos prisioneiros. Se acaso um passante falasse, o som ecoaria dessa parede e os prisioneiros suporiam, naturalmente, que as palavras que ouviam eram pronunciadas pelas sombras. Como estão nessa terrível situação desde que nasceram, os prisioneiros julgam que a realidade nada mais é que essa exibição de sombras tremulantes. Ora, se um desses homens fosse subitamente libertado de seus grilhões e levado a se voltar e encarar a claridade, teria os olhos ofuscados e feridos pela luz do fogo e do dia. Não estando habituado à luz, não conseguiria ver claramente quem passasse pela abertura da caverna e não acreditaria de pronto estar olhando para um mundo mais “real” que aquele em que cresceu. Precisaria primeiro fitar coisas menos luminosas, como as estrelas no céu noturno e reflexos na água, antes de chegar a contemplar objetos à plena luz do dia. No final, seria capaz de encarar o próprio Sol e compreender que é ele que determina as estações e lhe permite ter percepções. Em nossos dias, a caverna de Platão é muitas vezes comparada a uma sala de cinema da qual saímos pestanejando e trôpegos depois de uma matinê.
É paradoxal que, embora o desejo de Platão fosse rejeitar as crenças comuns sobre objetos cotidianos como meramente análogas ao conhecimento dos objetos ideais, a parábola da caverna em que expressa essa idéia mais vividamente seja ela própria uma analogia. Isso pode parecer contraditório, mas precisamos lembrar que o valor de uma boa alegoria reside menos em sua capacidade de provar uma argumentação que no modo como é capaz de nos apontar a direção geral da verdade. Usando o método da alegoria, a caverna de Platão ajuda-nos a passar de um terreno bem explorado para o território desconhecido onde, ele espera, a analogia já não será necessária. A história explica também porque as idéias de Platão, apresentadas como de Sócrates, talvez não convencessem imediatamente seus ouvintes, pois se o primeiro prisioneiro retornasse à caverna e informasse àqueles ainda cativos sobre o mundo lá fora, estes zombariam dele, taxando-o de maluco. Muitos pensadores do mundo real que tentaram ver a verdade por trás das aparências enfrentaram reações semelhantes. Ao apontar seu telescópio para Júpiter, Galileu discerniu os satélites do planeta e descobriu que um corpo celeste podia orbitar outro, mesmo este não sendo o centro do universo. Por analogia, raciocinou que a própria Terra poderia estar em um arranjo semelhante. Apesar de rejeitado em geral como absurdo na época, seu raciocínio ajudou a conduzir à compreensão atual do sistema solar.
O sol é de importância crucial no relato de Platão. Ele negava que o conhecimento equivalia à percepção, pois esta não é confiável ao passo que o verdadeiro conhecimento seria infalível. No entanto, sua analogia da alma com o olho mostra que ele pensava que o conhecimento opera por um mecanismo similar ao da percepção. Para Platão, apreensão é apreensão de uma coisa por outra coisa por meio de outra coisa. É preciso haver alguém que apreende, algo apreendido e finalmente um meio pelo qual a apreensão tem lugar. Assim como o Sol é a causa de nossas percepções graças à luz que emite, há algo que é a causa do conhecimento graças a um tipo de luz intelectual que opera sobre a alma. Platão chamou esse algo de idéia do “Bem”, que é a fonte da verdade e da razão nos seres humanos. O dever da filosofia era nos ensinar a usar a razão – nosso “olho” intelectual – de maneira apropriada, dirigindo-a para coisas que, de início, nos poderia ser difícil ou mesmo penoso olhar. A caverna e o Sol funcionam ao mesmo tempo como alegorias e argumentos para Platão. Em primeiro lugar, contam-nos uma história sobre como viemos a ser cegados para a verdade e como poderíamos passar a ver a luz. Em segundo lugar, se admitimos que a capacidade de compreender é uma faculdade, como a capacidade de ver ou ouvir, admitiremos que ela requer um meio, assim como a visão requer a luz como meio. Quando esse fator está ausente – quando a luz da razão é desprezada em favor da fé ou da ilusão -, estaremos verdadeiramente nas trevas no que diz respeito ao conhecimento.
Isso faz Platão soar bastante sóbrio, mas ao mesmo tempo ele acreditava que a idéia do “Bem” – o objeto que emitia “luz” intelectual – era tão real quanto o Sol (mais real, de fato, uma vez que se situava no reino eterno e imutável das idéias). A maioria dos adultos precisaria de mais provas que uma mera analogia antes de dar crédito a uma entidade oculta como essa. O conhecimento assemelha-se à percepção – ou à visão, pelo menos – sob muitos aspectos, mas sua operação não parece requerer uma fonte de energia transcendental. Nem todos os sentidos, aliás, requerem um meio. A visão requer uma fonte de luz, enquanto a audição depende do ar para transportar os sons, mas não parece haver um equivalente no caso do tato, por exemplo, em que nada é necessário além de mãos e objetos. Ademais, o Sol não é a única fonte de luz. Como lâmpadas, tochas e velas podem todos fornecer a iluminação que nos permite enxergar, a “luz” da compreensão poderia ter ela própria mais de uma fonte, não o “Bem” apenas. Assim como a descoberta de fatos conflitantes pode pôr em xeque uma teoria, imagens conflitantes como essas podem liquidar uma analogia. Embora a alegoria de Platão nos induza a levar adiante a investigação do “Bem”, dessemelhanças igualmente poderosas nos dizem para não nos darmos a esse trabalho.
A luz do Sol e a “luz” da razão se prestam a uma comparação agradável, e não surpreende que Platão tenha se deixado seduzir. Argumentações fundadas em analogia buscam mostrar que duas coisas semelhantes sob um aspecto devem ser semelhantes também sob outros. Quando dizemos isso, pensamos que os traços que já constatamos serem semelhantes são os essenciais – aqueles que determinam se um objeto terá ou não as características adicionais que são o objeto da investigação. No entanto, o que parece essencial para nós, seres humanos, pode não o parecer para a natureza, e é muitas vezes por isso que argumentações fundadas em analogia malogram. Por exemplo, ao mesmo tempo que a natureza pode permitir que um tipo de fruto seja nutritivo, isso não a impede de criar outros que são venenosos, embora se assemelhem ao primeiro. A toxidade pode ser um aspecto muito importante para nós, mas parece não ser tanto para as plantas, que não se preocupam em parecer suculentas apenas quando comestíveis por seres humanos. As aparências servem realmente como guias úteis para forrageadores, já que uma inspeção atenta – acompanhada por um pouco de conhecimento – nos permite em geral distinguir uma amoreira da mortífera beladona. No entanto, até grandes conhecedores por vezes se enganam, e seria imprudente esperar que toda frutinha preta e reluzente fosse uma delícia.
Como vimos, analogias funcionam para sugerir linhas de investigação futura sobre fatos concernentes ao mundo natural, não para demonstrar essas verdades em si mesmas. As vezes, contudo, funcionam como mais do que postes indicadores para a verdade. Isso ocorre quando já estabelecemos qual é a verdade mas ainda ignoramos suas ramificações, como muitas vezes ocorre na esfera da moral. A idéia de direitos dos animais, por exemplo, funda-se nas analogias traçadas entre seres humanos e outras criaturas vivas. Um chimpanzé tem as faculdades cognitivas de um bebê humano. Portanto, sustentam os ativistas dos diretos dos animais, um chimpanzé deveria ter os mesmos direitos que conferimos a nossos filhos e, por extensão, os mesmos direitos à vida de que os adultos desfrutam. Nesse caso, nós arbitramos o que um indivíduo deve possuir para fazer jus a direitos. Se for a capacidade de demonstrar algum tipo de consciência e alguma sensibilidade à dor, então pelo menos os animais “superiores” são tão qualificados quanto pessoas. É bem verdade que as faculdades mentais de um macaco ou de um golfinho são limitadas e não se desenvolvem como as de uma criança humana, mas dá-se o mesmo em adultos portadores de incapacidades físicas ou mentais graves, e nem por isso os relegamos ao status de animais. Ao contrário, pode-se afirmar que muitas sociedades defendem com mais vigor os diretos dos deficientes que os dos cidadãos capazes de defender a si mesmos. Empregamos padrões duplos, portanto, quando negamos direitos aos animais.
As analogias são muito eficazes para expor irregularidades desse tipo de nossa parte. O mundo físico opera segundo suas próprias leis, mas quando se trata de ética, a responsabilidade é nossa. Se afirmamos que faculdades cognitivas conferem o direito à vida, essa é uma decisão nossa, não um fato que poderíamos ter ou não descoberto. Em conseqüência, argumentações fundadas em analogia na esfera moral exigem que sejamos justos e coerentes em nossa tomada de decisão. A natureza, por outro lado, embora certamente injusta, escapa ao nosso controle, e não podemos esperar que seja coerente.
Resta saber se a comparação do Sr. Gates foi justa. Na opinião do Departamento de Justiça, não foi. As medidas que ele imaginou não se aplicavam a jornais ou automóveis porque nenhuma companhia tem um monopólio virtual nessas indústrias. Rasgar páginas do Wall Street Journal prejudicaria a capacidade do jornal de competir com seus rivais. Todo o sentido do processo antitruste movido contra a companhia de Gates, por outro lado, era que a inclusão gratuita de um navegador no pacote do software impedia outros fabricantes de navegadores de competir com a Micrososft. A analogia não resiste a um exame mais atento dos fatos, mesmo que à primeira vista soe procedente. Às vezes é fácil deixar-se seduzir por uma comparação elegante que aproxima uma coisa de outra erroneamente. O fato de algo soar adequado não o torna verdadeiro, é claro. Por essa razão, a tradição filosófica ocidental – para não mencionar os sistema jurídico – confere preponderância a argumentos lógicos sobre analogias, relegando estas últimas a um papel sobretudo ilustrativo. A idéia é que se algo pode ser adequadamente demonstrado pelo uso da lógica e dos fatos disponíveis, as analogias se tornam desnecessárias.
Quando explicações literais não convencem, os filósofos recorrem a analogias, alegorias e metáforas. Por vezes o fazem porque uma comparação adequada pode transmitir uma idéia de maneira muito mais rápida e fácil. Se, por esse fim, uma imagem vale mais que mil palavras, uma analogia pode valer mais que muitos argumentos. Por exemplo, a idéia de que nossos pensamentos e emoções podem ser explicados por referência ao funcionamento de nossos cérebros é uma das teorias mais fortemente defendidas, embora seja intuitivamente não convincente, da filosofia atual. Por mais forte que seja a defesa da idéia de que a consciência é um produto do cérebro e não, digamos, de uma alma imaterial, continua sendo desconcertante que pensamentos e emoções intangíveis possam ser formados pelos conteúdos decididamente materiais do crânio. Talvez a perplexidade ocorra por estarmos usando não a idéia errada, mas a imagem errada. Se imaginarmos o cérebro engendrando uma profusão de pensamentos como uma máquina fabrica-bugigangas, somos forçados a perguntar como os produtos podem ser tão diferentes do aparelho que os criou. As coisas ficam mais claras, porém, se imaginarmos que o cérebro trabalha como um tipo especial de máquina: um computador. O filósofo americano Hilary Putnam (1926-) sugeriu que os cérebros são os “discos rígidos” que rodam os “softwares” da consciência, assim como os PCs são os discos que rodam os programas de computador. Embora essa analogia por si só não prove coisa alguma – resta demonstrar se nossos cérebros realmente funcionam ou não dessa maneira -, ela nos permite compreender melhor como um processo de outro modo ininteligível poderia operar.
Idealmente, contudo, comparações são mais que meros auxílios para a compreensão. A palavra analogia, tomada do grego, significava originalmente igualdade de razões ou proposição. Quando usamos analogias em apoio a uma alegação, tomamos duas coisas ou processos que, embora diferentes, têm uma estrutura, forma ou outra característica em comum. Após uni-las dessa maneira, tomamos uma outra qualidade da primeira coisa e inferimos que a segunda coisa também a possui em virtude daquele primeiro traço que as duas partilha. Por exemplo, o filósofo e pastor anglicano inglês William Paley (1745-1805) tentou provar a existência de Deus chamando a atenção para a beleza e a ordem presentes no mundo natural. A natureza é tão intricada, ele sustentou, que evidencia a mão de um projetista. No cerne da argumentação de Paley estava sua famosa analogia do relógio. Se você topasse com um relógio numa praia, não o tomaria por um tipo estranho de seixo que tivesse sido erodido pela água – pois uma coisa como aquela não poderia ser fruto do acaso. Você inferiria que aquilo certamente fora criado por um relojoeiro. Como os processos da natureza exibem igual complexidade e precisão, também eles implicam um artífice. Inferências desse gênero nunca serão infalíveis, pois envolvem especulação sobre matérias que não testemunhamos diretamente. Se pudermos aceitar isso, podemos pelo menos admitir que as analogias nos apontam a direção em que procurar nossas respostas. A analogia de Paley era convincente e exigiu uma resposta séria de seus opositores. Sem dúvida, no caso de um relógio, seria possível abrir o estojo e procurar a inscrição “Made in Switzerland”, ao passo que não é assim tão fácil discernir a marca registrada do céu no mundo natural. Apesar disso, a ordem manifesta neste último é tão impressionante quanto a de qualquer produto mecânico, sendo igualmente improvável que tenha surgido por obra do puro acaso. Por causa dessa equivalência, faz-se necessária uma explicação para o “projeto” que se evidencia na natureza, que a busquemos em Deus ou não. Nesse sentido, Charles Darwin (1809-1882) foi capaz, mais tarde, de mostrar que a complexidade das espécies terrenas poderia ter surgido sem a intervenção consciente de uma divindade – mediante a evolução por seleção natural. Richard Dawkins (1941-), biólogo evolucionário e tema de um artigo posterior dessa série, intitulou um livro segundo esse processo, O Relojoeiro Cego.
Se a seleção natural tivesse sido descoberta antes da invenção dos relógios de pulso, teríamos podido concluir que a peça encontrada na praia evolvera da mesma maneira que os animais e as plantas. Podemos imaginar um cético negando a existência de artesãos suficientemente habilidosos para produzi-la. “Assim como não houve a intervenção de uma inteligência consciente na criação dos homens e dos animais”, diria ele, “tampouco deveríamos imaginar que foi uma inteligência semelhante que moldou esse estranho objeto metálico”. O que isso mostra é que as conclusões extraídas por analogia devem ser tratadas como provisórias. Deveriam ser vistas como o ponto de partida para uma investigação mais profunda, não como seu fim.
Em filosofia, a diferença entre o uso de analogias para provar uma idéia, por um lado, e simplesmente para elucidá-la, por outro, ficou muitas vezes esmaecida. Os diálogos de Platão estão entre as obras filosóficas de leitura mais agradável no cânone, e isso se deve em parte à sua riqueza em símiles e metáforas. Nascido em 428 a.C. Platão era o caçula de uma família ateniense rica e famosa. Consta que seu verdadeiro nome era Aristocles – “Platão” ou “Platon” sendo um apelido derivado da largura ou de seus ombros ou de sua testa. Quando jovem, recebeu a educação padrão de que desfrutavam os jovens aristocratas e tornou-se um lutador campeão, bem como exímio músico e poeta. Com muita aptidão para atividades físicas, serviu no exército ateniense entre 409 e 404 a. C. no final da Guerra do Peloponeso com Esparta. Depois da guerra, abraçou a causa dos Trinta Tiranos, a oligarquia estabelecida em Atenas em 404 a.C. Embora um dos líderes desse grupo fosse seu tio Carmides, as violências por ele cometidas logo levaram Platão a se afastar. Um ano depois, quando a democracia foi restaurada, Platão já abandonara suas ambições políticas. Essa decisão foi confirmada pela execução de seu mestre Sócrates em 399 a.C., após a qual viajou pelo Egito, a Itália e a Sicília. Depois passou um outro período no exército, durante o qual consta ter sido condecorado por bravura em combate. Concluindo que sua influência política viria do ensinamento e não do exemplo, em 387 a. C. Platão fundou a Academia, uma escola dedicada à ciência e à filosofia, que se reunia no jardim de Academo. O objetivo da escola era ser um viveiro de futuros estadistas que, Platão esperava, fariam melhor serviço que seus antecessores. Embora seu fundador tenha morrido aos oitenta anos, a Academia perdurou por quase nove séculos, até ser condenada como um estabelecimento pagão e fechada pelo imperador cristão Justiniano. Na realidade, Platão teve uma oportunidade de exercer influência mais direta sobre sua época. Quando o soberano de Siracusa, Dionísio I, morreu, ele aceitou, um tanto a contragosto, o convite de Dion, cunhado do ex-soberano, para ser o preceptor de Dionísio II. O plano malogrou quando o novo soberano expulsou Dion de Siracusa. Platão foi preso e depois vendido como escravo – condição de que teve de ser resgatado por um amigo.
Depois de seu primeiro encontro com o grande Sócrates em 408 a.C., quando tinha vinte anos, Platão queimou publicamente os poemas que escrevera e jurou seguir uma vida filosófica. Como prova de sua dedicação, afirmou certa vez que escolhera morar numa rua habitada por ourives; assim, quando a sonolência começasse a lhe anuviar os pensamentos, seria despertado pelas ferramentas dos artífices. Logo se provou o discípulo mais capaz de Sócrates, cujas idéias absorveu e desenvolveu extensamente em seus diálogos. Ele próprio, Platão, não figura nesses diálogos e como têm sempre Sócrates como protagonista, por vezes é difícil discernir se as idéias neles expressadas pertencem ao mestre ou ao discípulo. Há alguns indícios de que Sócrates ficava perplexo com a maneira como Platão o representava, e que uma vez teve um sonho em que seu protegido se transformava em um corvo, pulava em sua cabeça e lhe bicava a careca. A visão de consenso é que a teoria das formas, que serve de base a muitas das argumentações nos diálogos de Platão, pertence fundamentalmente ao próprio Platão, não a Sócrates. Essa teoria, segundo a qual o mundo físico das imagens e impressões é uma pálida imitação de um mundo mais elevado de conhecimento e verdade, lança mão do princípio da analogia. Sob seus termos, não podemos conhecer coisa como árvores e animais, já que o mundo das aparências que elas povoam não se presta a um conhecimento propriamente dito. Na visão de Platão, só podemos conhecer realmente aquilo que é verdadeiramente real, e esse critério só é satisfeito por objetos perfeitos e imutáveis. Em algum lugar, ele afirmava, existe uma árvore ideal que fixa o padrão, e é dela que as árvores comuns derivam sua forma. Essa árvore ideal é também o objeto a que aludimos em nossa fala cotidiana sobre árvores. No que diz respeito aos carvalhos e plátanos comuns dos parques e florestas, temos com eles uma relação que é inferior ao conhecimento, mas análoga a ele - isto é, meramente os percebemos. Podemos, contudo – com a formação filosófica apropriada -, adquirir conhecimento sobre os correspondentes das árvores e dos animais que residem no mundo da verdade eterna. Enquanto as percepções podem ser embaçadas ou errôneas, todo conhecimento desse domínio mais elevado seria perfeito e nunca passível de correção.
Para descrever nossa relação com o mundo da verdade, Platão lançou mão de uma das analogias mais famosas da filosofia ocidental: o mito, ou alegoria da caverna. Em sua obra-prima, A República, pede-nos para imaginar homens aprisionados numa caverna, sem nunca terem visto o mundo exterior. São mantidos acorrentados e de costas para a entrada, sequer podendo mover a cabeça para se voltarem e se verem uns aos outros ou a luz do dia atrás de si. Um fogo é mantido aceso na entrada da caverna, e as pessoas que passam diante dele projetam sombras de si mesmas e de suas cargas sobre a parede à frente dos prisioneiros. Se acaso um passante falasse, o som ecoaria dessa parede e os prisioneiros suporiam, naturalmente, que as palavras que ouviam eram pronunciadas pelas sombras. Como estão nessa terrível situação desde que nasceram, os prisioneiros julgam que a realidade nada mais é que essa exibição de sombras tremulantes. Ora, se um desses homens fosse subitamente libertado de seus grilhões e levado a se voltar e encarar a claridade, teria os olhos ofuscados e feridos pela luz do fogo e do dia. Não estando habituado à luz, não conseguiria ver claramente quem passasse pela abertura da caverna e não acreditaria de pronto estar olhando para um mundo mais “real” que aquele em que cresceu. Precisaria primeiro fitar coisas menos luminosas, como as estrelas no céu noturno e reflexos na água, antes de chegar a contemplar objetos à plena luz do dia. No final, seria capaz de encarar o próprio Sol e compreender que é ele que determina as estações e lhe permite ter percepções. Em nossos dias, a caverna de Platão é muitas vezes comparada a uma sala de cinema da qual saímos pestanejando e trôpegos depois de uma matinê.
É paradoxal que, embora o desejo de Platão fosse rejeitar as crenças comuns sobre objetos cotidianos como meramente análogas ao conhecimento dos objetos ideais, a parábola da caverna em que expressa essa idéia mais vividamente seja ela própria uma analogia. Isso pode parecer contraditório, mas precisamos lembrar que o valor de uma boa alegoria reside menos em sua capacidade de provar uma argumentação que no modo como é capaz de nos apontar a direção geral da verdade. Usando o método da alegoria, a caverna de Platão ajuda-nos a passar de um terreno bem explorado para o território desconhecido onde, ele espera, a analogia já não será necessária. A história explica também porque as idéias de Platão, apresentadas como de Sócrates, talvez não convencessem imediatamente seus ouvintes, pois se o primeiro prisioneiro retornasse à caverna e informasse àqueles ainda cativos sobre o mundo lá fora, estes zombariam dele, taxando-o de maluco. Muitos pensadores do mundo real que tentaram ver a verdade por trás das aparências enfrentaram reações semelhantes. Ao apontar seu telescópio para Júpiter, Galileu discerniu os satélites do planeta e descobriu que um corpo celeste podia orbitar outro, mesmo este não sendo o centro do universo. Por analogia, raciocinou que a própria Terra poderia estar em um arranjo semelhante. Apesar de rejeitado em geral como absurdo na época, seu raciocínio ajudou a conduzir à compreensão atual do sistema solar.
O sol é de importância crucial no relato de Platão. Ele negava que o conhecimento equivalia à percepção, pois esta não é confiável ao passo que o verdadeiro conhecimento seria infalível. No entanto, sua analogia da alma com o olho mostra que ele pensava que o conhecimento opera por um mecanismo similar ao da percepção. Para Platão, apreensão é apreensão de uma coisa por outra coisa por meio de outra coisa. É preciso haver alguém que apreende, algo apreendido e finalmente um meio pelo qual a apreensão tem lugar. Assim como o Sol é a causa de nossas percepções graças à luz que emite, há algo que é a causa do conhecimento graças a um tipo de luz intelectual que opera sobre a alma. Platão chamou esse algo de idéia do “Bem”, que é a fonte da verdade e da razão nos seres humanos. O dever da filosofia era nos ensinar a usar a razão – nosso “olho” intelectual – de maneira apropriada, dirigindo-a para coisas que, de início, nos poderia ser difícil ou mesmo penoso olhar. A caverna e o Sol funcionam ao mesmo tempo como alegorias e argumentos para Platão. Em primeiro lugar, contam-nos uma história sobre como viemos a ser cegados para a verdade e como poderíamos passar a ver a luz. Em segundo lugar, se admitimos que a capacidade de compreender é uma faculdade, como a capacidade de ver ou ouvir, admitiremos que ela requer um meio, assim como a visão requer a luz como meio. Quando esse fator está ausente – quando a luz da razão é desprezada em favor da fé ou da ilusão -, estaremos verdadeiramente nas trevas no que diz respeito ao conhecimento.
Isso faz Platão soar bastante sóbrio, mas ao mesmo tempo ele acreditava que a idéia do “Bem” – o objeto que emitia “luz” intelectual – era tão real quanto o Sol (mais real, de fato, uma vez que se situava no reino eterno e imutável das idéias). A maioria dos adultos precisaria de mais provas que uma mera analogia antes de dar crédito a uma entidade oculta como essa. O conhecimento assemelha-se à percepção – ou à visão, pelo menos – sob muitos aspectos, mas sua operação não parece requerer uma fonte de energia transcendental. Nem todos os sentidos, aliás, requerem um meio. A visão requer uma fonte de luz, enquanto a audição depende do ar para transportar os sons, mas não parece haver um equivalente no caso do tato, por exemplo, em que nada é necessário além de mãos e objetos. Ademais, o Sol não é a única fonte de luz. Como lâmpadas, tochas e velas podem todos fornecer a iluminação que nos permite enxergar, a “luz” da compreensão poderia ter ela própria mais de uma fonte, não o “Bem” apenas. Assim como a descoberta de fatos conflitantes pode pôr em xeque uma teoria, imagens conflitantes como essas podem liquidar uma analogia. Embora a alegoria de Platão nos induza a levar adiante a investigação do “Bem”, dessemelhanças igualmente poderosas nos dizem para não nos darmos a esse trabalho.
A luz do Sol e a “luz” da razão se prestam a uma comparação agradável, e não surpreende que Platão tenha se deixado seduzir. Argumentações fundadas em analogia buscam mostrar que duas coisas semelhantes sob um aspecto devem ser semelhantes também sob outros. Quando dizemos isso, pensamos que os traços que já constatamos serem semelhantes são os essenciais – aqueles que determinam se um objeto terá ou não as características adicionais que são o objeto da investigação. No entanto, o que parece essencial para nós, seres humanos, pode não o parecer para a natureza, e é muitas vezes por isso que argumentações fundadas em analogia malogram. Por exemplo, ao mesmo tempo que a natureza pode permitir que um tipo de fruto seja nutritivo, isso não a impede de criar outros que são venenosos, embora se assemelhem ao primeiro. A toxidade pode ser um aspecto muito importante para nós, mas parece não ser tanto para as plantas, que não se preocupam em parecer suculentas apenas quando comestíveis por seres humanos. As aparências servem realmente como guias úteis para forrageadores, já que uma inspeção atenta – acompanhada por um pouco de conhecimento – nos permite em geral distinguir uma amoreira da mortífera beladona. No entanto, até grandes conhecedores por vezes se enganam, e seria imprudente esperar que toda frutinha preta e reluzente fosse uma delícia.
Como vimos, analogias funcionam para sugerir linhas de investigação futura sobre fatos concernentes ao mundo natural, não para demonstrar essas verdades em si mesmas. As vezes, contudo, funcionam como mais do que postes indicadores para a verdade. Isso ocorre quando já estabelecemos qual é a verdade mas ainda ignoramos suas ramificações, como muitas vezes ocorre na esfera da moral. A idéia de direitos dos animais, por exemplo, funda-se nas analogias traçadas entre seres humanos e outras criaturas vivas. Um chimpanzé tem as faculdades cognitivas de um bebê humano. Portanto, sustentam os ativistas dos diretos dos animais, um chimpanzé deveria ter os mesmos direitos que conferimos a nossos filhos e, por extensão, os mesmos direitos à vida de que os adultos desfrutam. Nesse caso, nós arbitramos o que um indivíduo deve possuir para fazer jus a direitos. Se for a capacidade de demonstrar algum tipo de consciência e alguma sensibilidade à dor, então pelo menos os animais “superiores” são tão qualificados quanto pessoas. É bem verdade que as faculdades mentais de um macaco ou de um golfinho são limitadas e não se desenvolvem como as de uma criança humana, mas dá-se o mesmo em adultos portadores de incapacidades físicas ou mentais graves, e nem por isso os relegamos ao status de animais. Ao contrário, pode-se afirmar que muitas sociedades defendem com mais vigor os diretos dos deficientes que os dos cidadãos capazes de defender a si mesmos. Empregamos padrões duplos, portanto, quando negamos direitos aos animais.
As analogias são muito eficazes para expor irregularidades desse tipo de nossa parte. O mundo físico opera segundo suas próprias leis, mas quando se trata de ética, a responsabilidade é nossa. Se afirmamos que faculdades cognitivas conferem o direito à vida, essa é uma decisão nossa, não um fato que poderíamos ter ou não descoberto. Em conseqüência, argumentações fundadas em analogia na esfera moral exigem que sejamos justos e coerentes em nossa tomada de decisão. A natureza, por outro lado, embora certamente injusta, escapa ao nosso controle, e não podemos esperar que seja coerente.
Não deixe de ler AS METAS DE ARISTÓTELES que será postado em breve
1 Comments:
No Livro VII de A República, Platão relata o diálogo de Sócrates e Glauco sobre a condição humana em torno da oposição instrução vs. ignorância.
Sócrates descreve o percurso que o homem deve fazer para, a partir do mundo sensível, formado pelas imagens e aparências - cópias do mundo das Idéias, atingir esse segundo, o mundo inteligível, formado pelas Idéias eternas. A ascensão é obtida por intermédio da razão: pela busca de conhecimento, da Justiça, da Verdade e do Belo se atinge o Bem, fonte de toda luz.
Sócrates expõe esses pensamentos através do mito alegórico da caverna (1) .
Num primeiro momento relata a situação na qual o homem se encontra no mundo.
Agora imagina a maneira como segue o estado da nossas natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoço acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas.
Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que o transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio.
E se a parede do fundo da prisão provocasse eco, sempre que um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles? (Platão, 2000, 225-6)
Sócrates identifica a vida do homem sem acesso à educação, e portanto ignorante, com a vida do prisioneiro da caverna que acredita e se satisfaz com as sombras, as ilusões e aparências. Os dois vivem no escuro, conformados com o mínimo de luz-conhecimento que recebem.
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