O DEMÔNIO DE DESCARTES - Os Limites da Dúvida
Este é o 11º artigo desta série. Os três últimos são:
08 - A Navalha de Occam
09 - O Príncipe de Maquiavel
10 - As Galinhas de Bacon
Michel de Montaigne, o ensaísta francês do século XVI, observou: “É ter em alta conta nossas próprias suposições zombar dos outros pela importância que lhes atribuem”. Já faz algum tempo que as pessoas no mundo ocidental deixaram de confiar em suas crenças o bastante para tomar tais medidas. A idéia de que nunca podemos estar absolutamente certos de coisa alguma é o pressuposto que sustenta a tolerância. Embora essa dúvida nos permita conviver socialmente, ela pode, contudo, ser pessoalmente danosa. Todos nós tivemos a experiência de descobrir que uma crença solidamente sustentada é, de fato, falsa, e de nos perguntarmos então como poderíamos confias de novo em nosso julgamento. Se isso acontece com freqüência suficiente, e com relação a nossas crenças mais importantes, a dúvida desenfreada que sobrevém pode ser um problema sério. Uma traição por um amante, por exemplo, pode nos levar a desconfiar também de futuros parceiros. Para continua a viver com a dúvida, em geral rebaixamos a importância da certeza em nossa visão de mundo. Contentamo-nos em sustentar nossas crenças apenas provisoriamente, ou pelo menos em afirmar que o fazemos quando contestados. Em vez de se contentar com essa acomodação, alguns filósofos passaram a refletir vigorosamente sobre o poder da própria dúvida.
A tentativa mais famosa foi a de René Descartes, que nasceu em 1596 em La Haye, na França, uma cidadezinha entre Tours e Poitiers que teve mais tarde o nome trocado pelo seu. Aos oito anos, Descartes foi mandado para o colégio jesuíta de La Fleche em Anjou, onde estudou a filosofia de Aristóteles, dominante na época, juntamente com os clássicos e a matemática. Era uma criança tão fraca e pálida que não se esperava que vivesse muito. Um dos mestres, padre Charlet, com pena do menino por causa de sua fragilidade, permitia-lhe passar todas as manhãs na cama – hábito que Descartes apreciaria pelo resto da vida. Longe de lhe valer a fama de preguiçoso, sua indolência era vista como sinal de uma propensão precoce para a meditação. O próprio Descartes não fez nenhum esforço para desfazer essa idéia e afirmou que essas manhãs passadas na cama eram a fonte de suas idéias filosóficas mais importantes. Em 1619, decidiu ingressar no exército bávaro pelas oportunidades que assim teria de ver o mundo. Viajou muito pela Europa como parte de seu serviço militar, e, apesar da eclosão da Guerra dos Trinta Anos em 1618, ele parece não ter participado de nenhuma batalha. Isso não o impediu, porém, de condenar a vida militar como ociosa, estúpida, imoral e cruel.
Em 1628, Descartes foi para a Holanda, onde suas idéias mais polêmicas sobre filosofia e o mundo natural seriam toleradas (ou pelo menos ignoradas). Em contraposição, o Parlamento de Paris aprovara, em 1624, um decreto que tornava críticas a Aristóteles passíveis de pena de morte. Descartes iniciou um trabalho no campo da física, mas, ao saber que Galileu fora posto em prisão domiciliar em 1633 por ajudar a corroborar o modelo heliocêntrico do sistema solar de Copérnico, não se arriscou a publicá-lo, temendo, muito compreensivelmente, um destino parecido. Mas a autopreservação não era seu único interesse. Durante toda a sua vida desejou ganhar o respeito não só de seus pares na filosofia e nas ciências como da Igreja católica. Homem de convicção religiosa, esperava que sua obra promovesse a fé, mas a Igreja nunca se convenceria de sua devoção. Numa visão retrospectiva, as autoridades estavam certas em seu ceticismo. Descartes foi parte do novo movimento de investigação que levou ao Iluminismo e forçou a religião a recuar. Sua obra, tanto em filosofia quanto em ciência, estimulou os agnósticos, ao passo que suas tentativas de edificar uma base racional para a fé conseguiram apenas demonstrar as dificuldades inerentes a semelhante projeto. Descartes era tão entusiástico com relação a seus projetos de ter uma longa vida quanto com relação à sua obra. Em 1639, gabou-se de não adoecer havia dezenove anos e de esperar viver até os cem. Dez anos depois aceitou um fatídico convite para se mudar para Estocolmo. A honra lhe foi dada pela rainha Cristina da Suécia, então com dezenove anos, que pensava que a instrução proporcionada por um dos maiores pensadores do mundo poderia distraí-la em suas horas vagas. Ela acalentava também a esperança de transformá-lo em um aristocrata sueco, com uma propriedade em terras alemãs conquistadas. Descartes imediatamente se arrependeu de sua decisão. Era um homem chegado a uma lareira crepitante e desenvolvera suas idéias mais originais ao devanear em um quarto aquecido por uma estufa. Ali, esperava-se que ele, em vez de ficar preguiçando na cama, enfrentasse o frio às cinco horas da manhã – a única hora em que Cristina conseguiu encaixar suas lições em sua assoberbada agenda. Tendo se queixado de que o inverno sueco congelava as mentes dos homens como congelava a água, em uma manhã de 1650 contraiu um resfriado e morreu de pneumonia.
O legado de Descartes foi o início da filosofia moderna. Com seus desvarios da juventude em mente, ele desejava elevar nosso conhecimento comum sobre o mundo e uma posição tão segura quanto a das verdades eternas da geometria e da matemática. Em geral reagimos a nossos erros iniciais mudando nossas opiniões, mas Descartes propôs-se a transformar o próprio método pelo qual formava suas idéias. Se as chamadas “certezas” filosóficas podem de fato ser postas em dúvida, ele decidiu duvidar de todas até encontrar uma que fosse indubitável. Esperava que, ao discernir o que tornava tal idéia inquestionável, o mesmo método de corroboração pudesse ser usado para reconstruir todo o edifício de seu conhecimento. Descartes escreveu que seu método imitava o de um arquiteto. Quando um arquiteto quer construir uma casa num terreno arenoso, começa por cavar um conjunto de valas das quais remove a areia, de modo a poder assentar suas fundações em solo firme. Da mesma maneira, Descartes começa a sua filosofia tomando tudo que é duvidoso e rejeitando-o como areia. No lugar da picareta ele emprega os métodos da dúvida para limpar o terreno para o conhecimento.
A demolição começa com os míseros sentidos humanos dos quais a maior parte de nossas crenças deriva. Nossa vista e audição por vezes nos falham e, como Descartes assinala, “É prudente nunca confiar inteiramente nas coisas que nos enganaram uma vez”. No entanto, esses erros em geral são cometidos quando algo está distante demais e é muito pequeno para ser corretamente visto. Havia outras coisas das quais, embora derivassem dos mesmos sentidos, Descartes simplesmente não era capaz de duvidar: por exemplo, de que estava sentado ao pé do fogo usando um manto de inverno. Não podia lançar dúvida sobre esses fatos a menos que fosse um louco, e recusava-se a tomar os loucos por modelo. Havia ainda a possibilidade de que não estivesse em absoluto sentado junto ao fogo, mas sim adormecido e sonhando em sua cama. Sem o benefício da visão retrospectiva, parece não haver nenhum meio conclusivo que nos permita determinar se ele estava acordado ou dormindo. Muitos de nós já tivemos sonhos intensamente vívidos de cuja realidade estávamos convencidos até que acordamos. A resposta de Descartes para esse problema é admitir que está de fato sonhando, pois há coisas sobre as quais ele não pode se enganar mesmo dormindo. Nem nossas visões mais fantásticas são inteiramente novas. Os unicórnios, que só existem na imaginação, não deixam por isso de ser produto de coisas reais – isto é, chifres e cavalos. Sem dúvida chifres e cavalos poderiam também ser imaginários, mas ainda assim teriam de ser compostos de cores reais. De mais a mais, dois mais três são cinco, quer estejamos acordados ou dormindo. Descartes argumenta, porém , que um Deus onipotente poderia ter feito com que não houvesse terra nem céu, nem forma, tamanho , cor ou lugar, mas que, não obstante, essas coisas parecessem existir. Aliás, Deus poderia também ter levado Descartes a cometer um erro cada vez que somava dois mais três. Presumivelmente Deus tem mais o que fazer, mas o filósofo imagina haver um demônio malévolo, supremamente poderoso e astuto, que dedica todas as suas energias a enganar pobres filósofos pondo imagens falsas diante deles e confundindo-lhes os cálculos. Esse estratagema fornece a Descartes uma dúvida completamente “hiperbólica” – a idéia de que todas as crenças que alimenta poderiam de fato ser falsas e todas as suas percepções ilusórias.
A saída fácil seria duvidar de existência desse demônio, mas Descartes opta por encará-lo. Mesmo que admita estar nas garras do demônio, ainda há algo a cujo respeito não pode ser enganado: o fato de que ele, Descartes, existe. Em uma das frases mais famosas tanto da filosofia quanto do latim, declarou, “Cogito ergo sum”: “Penso, logo existo”. Não lhe é possível duvida da própria existência, pois para duvidar é preciso existir.
Lamentavelmente, Descartes não foi capaz de reconstruir o conhecimento a partir desse fundamento. O cogito era verdadeiro, ele sustentou, porque era uma crença “clara e distinta”, mas suas tentativas de definir o que torna uma idéia clara e distinta tiveram resultados bastante vagos. Ao que parece, Descartes tinha em mente aquelas crenças tão claramente corretas que devem ter sido postas diante de nós por Deus, e Ele não desejaria nos enganar. Por exemplo, podemos ter certeza de que a matéria sempre tem dimensões e de que o triângulo sempre tem três lados. Não podemos pensar a matéria sem imaginá-la dotada de dimensões. Tampouco podemos conceber um triângulo sem imaginar que tem três lados. Mas se Deus deve endossar essas “crenças claras e distintas”, precisamos primeiro ter certeza de que Ele existe. Descartes argumentou que, assim como a idéia de triângulo significa a posse de três lados, a própria idéia de Deus assegura sua existência. Essa é uma variante do famigerado “argumento ontológico” – cujo fundamento é: se imaginamos Deus não existindo não estamos imaginando Deus, mas algo inferior a Ele. Para um ser supostamente perfeito, a não existência é realmente uma imperfeição. É uma matéria de apreensão clara e distinta que se imaginamos verdadeiramente um ser onipotente, onisciente e imortal, temos também de imaginar que ele existe. Os argumentos ontológicos fracassam por várias razões, e uma é que não são aplicáveis exclusivamente a Deus. Se imaginássemos um ser humano perfeito, por exemplo, a existência teria presumivelmente de estar incluída entre seus atributos, mas isso não significa que esse sujeito perfeito anda pela Terra em algum lugar. Mesmo sem esse problema, a argumentação de Descartes é circular, pois a veracidade de nossas percepções claras e distintas repousa sobre algo, que chamamos de Deus, que só ganha crédito ela própria por ser uma percepção clara e distinta.
É mais proveitoso inspecionar as bases sobre as quais somos capazes de duvidar. O cogito de Descartes estava na trilha certa, pois toda dúvida deve se basear em algo que não é em si mesmo objeto de dúvida. Por exemplo, se suspeito que o “Picasso” que me venderam é uma falsificação, é porque acredito que ele seja diferente das obras autênticas expostas nas coleções de arte. Da mesma maneira, posso duvidar do valor que aparece na minha conta no restaurante porque acredito ou ter pedido o item mais barato do cardápio ou que os garçons são capazes de cometer erros. Precisamos de fundamentos para a dúvida, e não podemos duvidar desses fundamentos ao mesmo tempo em que os usamos para duvidar de outras coisas. Em outras palavras, se duvidamos das dúvidas, é que não duvidamos de maneira alguma. Onde quer que haja ceticismo, deve haver ao mesmo tempo algo a cujo respeito não somos céticos. A dúvida sensata só pode ser parcial, sempre, e isso impõe limites severos à capacidade que tem o demônio de nos enganar. Podemos estar errados sobre certas coisas, mas não podemos estar errados sobre tudo – isso nos privaria não só dos meios de corrigir nossos erros, mas de qualquer base a partir da qual pudéssemos dizer que um erro foi cometido depois que o demônio tiver revelado a “verdade”. Esse demônio enfeitiçou os sentidos de Descartes mais do que ele supunha. Mas em vez de induzi-lo a superestimar o que ele pensava conhecer, levou-o a subestimar suas próprias capacidades como sujeito cognoscente.
Para nos enganar, o demônio tem de estar de posse de uma realidade que reconheceríamos e admitiríamos quando o véu da percepção fosse retirado. Mas isso exige um corpo de conhecimento que podemos considerar fixo, para fazer a distinção depois que o virmos. O mundo do demônio imaginado por Descartes é tal que nele não há Picassos autênticos e nem garçons nem clientes jamais fazem suas contas corretamente.. Mesmo em um cenário como esse, existem coisas como falsificações reais e contas corretas – o único problema é que não as identificamos quando as vemos. Que elas existem, contudo, é algo de que não podemos duvidar, pois de outro modo não haveria nenhuma resposta correta contrariada por nossos juízos. Ao nos negar a possibilidade de alguma vez estarmos corretos, porém, o demônio e sua realidade passam a ser irrelevantes.
O mundo verdadeiro supostamente ocultado de nós pelo demônio está para a “realidade” como a “realidade” está para nossos sonhos. A vítima do demônio encontra-se em uma posição semelhante à das pessoas que afirmam ter por vezes “acordado” em um sonho e percebido seu impasse. Se tenho um sonho em que me dou conta de que estou sonhando, essa percepção também é parte do sonho. Assim, como posso saber se realmente me dei conta de que estava sonhando ou se meramente sonhei que o fiz? Digamos que esse pensamento também me ocorra dentro de meu sonho; isso não fará nenhuma diferença, pois é tão parte do sonho como tudo o mais. Minha percepção não pode ser verdadeira, pois, quando estou sonhando, tudo que penso, digo e faço ocorre no contexto do sonho. Meus pensamentos oníricos não podem penetrar no mundo real para serem verdadeiros ou falsos. Essa incapacidade seria partilhada pelos pensamentos que temos quando acordados se eles fossem todos resultado do engano do demônio. Nossos pensamentos seriam incapazes de efetivamente se referirem ao mundo real e oculto da verdade, conhecido unicamente por nosso enganador. Não poderiam estar errados acerca desse mundo porque não estão, e nunca podem estar, relacionados a ele.
Essa discussão da possibilidade do conhecimento pode parecer hermética e muito distante da vida comum, mas tem conseqüências muito reais para nossas dúvidas e preocupações cotidianas. Um mundo em que todos os nossos amantes poderiam estar nos traindo, por exemplo, e em que jamais somos capazes de descobri-lo, não é o mundo em que vivemos. Quando nossas dúvidas superam nossa capacidade de acreditar na evidência de nossos sentidos, desprezamos essas mesmas desconfianças e zombamos delas. Poderíamos, é claro, ser extremamente azarados e nos envolver com uma série de parceiros adúlteros. No entanto, o fato de podermos descobrir e reconhecer a traição significa que não deveríamos descrer da fidelidade. Cada nova dúvida (nesse caso, cada nova infidelidade que aceitamos como verdade e não como boato) torna-se por sua vez fundamento para crença. Se confiamos em nosso poder de dedução quando ele revela o logro, deveríamos confiar igualmente nele quando não o faz.
O próximo artigo desta série é O GARFO DE HUME
08 - A Navalha de Occam
09 - O Príncipe de Maquiavel
10 - As Galinhas de Bacon
Michel de Montaigne, o ensaísta francês do século XVI, observou: “É ter em alta conta nossas próprias suposições zombar dos outros pela importância que lhes atribuem”. Já faz algum tempo que as pessoas no mundo ocidental deixaram de confiar em suas crenças o bastante para tomar tais medidas. A idéia de que nunca podemos estar absolutamente certos de coisa alguma é o pressuposto que sustenta a tolerância. Embora essa dúvida nos permita conviver socialmente, ela pode, contudo, ser pessoalmente danosa. Todos nós tivemos a experiência de descobrir que uma crença solidamente sustentada é, de fato, falsa, e de nos perguntarmos então como poderíamos confias de novo em nosso julgamento. Se isso acontece com freqüência suficiente, e com relação a nossas crenças mais importantes, a dúvida desenfreada que sobrevém pode ser um problema sério. Uma traição por um amante, por exemplo, pode nos levar a desconfiar também de futuros parceiros. Para continua a viver com a dúvida, em geral rebaixamos a importância da certeza em nossa visão de mundo. Contentamo-nos em sustentar nossas crenças apenas provisoriamente, ou pelo menos em afirmar que o fazemos quando contestados. Em vez de se contentar com essa acomodação, alguns filósofos passaram a refletir vigorosamente sobre o poder da própria dúvida.
A tentativa mais famosa foi a de René Descartes, que nasceu em 1596 em La Haye, na França, uma cidadezinha entre Tours e Poitiers que teve mais tarde o nome trocado pelo seu. Aos oito anos, Descartes foi mandado para o colégio jesuíta de La Fleche em Anjou, onde estudou a filosofia de Aristóteles, dominante na época, juntamente com os clássicos e a matemática. Era uma criança tão fraca e pálida que não se esperava que vivesse muito. Um dos mestres, padre Charlet, com pena do menino por causa de sua fragilidade, permitia-lhe passar todas as manhãs na cama – hábito que Descartes apreciaria pelo resto da vida. Longe de lhe valer a fama de preguiçoso, sua indolência era vista como sinal de uma propensão precoce para a meditação. O próprio Descartes não fez nenhum esforço para desfazer essa idéia e afirmou que essas manhãs passadas na cama eram a fonte de suas idéias filosóficas mais importantes. Em 1619, decidiu ingressar no exército bávaro pelas oportunidades que assim teria de ver o mundo. Viajou muito pela Europa como parte de seu serviço militar, e, apesar da eclosão da Guerra dos Trinta Anos em 1618, ele parece não ter participado de nenhuma batalha. Isso não o impediu, porém, de condenar a vida militar como ociosa, estúpida, imoral e cruel.
Em 1628, Descartes foi para a Holanda, onde suas idéias mais polêmicas sobre filosofia e o mundo natural seriam toleradas (ou pelo menos ignoradas). Em contraposição, o Parlamento de Paris aprovara, em 1624, um decreto que tornava críticas a Aristóteles passíveis de pena de morte. Descartes iniciou um trabalho no campo da física, mas, ao saber que Galileu fora posto em prisão domiciliar em 1633 por ajudar a corroborar o modelo heliocêntrico do sistema solar de Copérnico, não se arriscou a publicá-lo, temendo, muito compreensivelmente, um destino parecido. Mas a autopreservação não era seu único interesse. Durante toda a sua vida desejou ganhar o respeito não só de seus pares na filosofia e nas ciências como da Igreja católica. Homem de convicção religiosa, esperava que sua obra promovesse a fé, mas a Igreja nunca se convenceria de sua devoção. Numa visão retrospectiva, as autoridades estavam certas em seu ceticismo. Descartes foi parte do novo movimento de investigação que levou ao Iluminismo e forçou a religião a recuar. Sua obra, tanto em filosofia quanto em ciência, estimulou os agnósticos, ao passo que suas tentativas de edificar uma base racional para a fé conseguiram apenas demonstrar as dificuldades inerentes a semelhante projeto. Descartes era tão entusiástico com relação a seus projetos de ter uma longa vida quanto com relação à sua obra. Em 1639, gabou-se de não adoecer havia dezenove anos e de esperar viver até os cem. Dez anos depois aceitou um fatídico convite para se mudar para Estocolmo. A honra lhe foi dada pela rainha Cristina da Suécia, então com dezenove anos, que pensava que a instrução proporcionada por um dos maiores pensadores do mundo poderia distraí-la em suas horas vagas. Ela acalentava também a esperança de transformá-lo em um aristocrata sueco, com uma propriedade em terras alemãs conquistadas. Descartes imediatamente se arrependeu de sua decisão. Era um homem chegado a uma lareira crepitante e desenvolvera suas idéias mais originais ao devanear em um quarto aquecido por uma estufa. Ali, esperava-se que ele, em vez de ficar preguiçando na cama, enfrentasse o frio às cinco horas da manhã – a única hora em que Cristina conseguiu encaixar suas lições em sua assoberbada agenda. Tendo se queixado de que o inverno sueco congelava as mentes dos homens como congelava a água, em uma manhã de 1650 contraiu um resfriado e morreu de pneumonia.
O legado de Descartes foi o início da filosofia moderna. Com seus desvarios da juventude em mente, ele desejava elevar nosso conhecimento comum sobre o mundo e uma posição tão segura quanto a das verdades eternas da geometria e da matemática. Em geral reagimos a nossos erros iniciais mudando nossas opiniões, mas Descartes propôs-se a transformar o próprio método pelo qual formava suas idéias. Se as chamadas “certezas” filosóficas podem de fato ser postas em dúvida, ele decidiu duvidar de todas até encontrar uma que fosse indubitável. Esperava que, ao discernir o que tornava tal idéia inquestionável, o mesmo método de corroboração pudesse ser usado para reconstruir todo o edifício de seu conhecimento. Descartes escreveu que seu método imitava o de um arquiteto. Quando um arquiteto quer construir uma casa num terreno arenoso, começa por cavar um conjunto de valas das quais remove a areia, de modo a poder assentar suas fundações em solo firme. Da mesma maneira, Descartes começa a sua filosofia tomando tudo que é duvidoso e rejeitando-o como areia. No lugar da picareta ele emprega os métodos da dúvida para limpar o terreno para o conhecimento.
A demolição começa com os míseros sentidos humanos dos quais a maior parte de nossas crenças deriva. Nossa vista e audição por vezes nos falham e, como Descartes assinala, “É prudente nunca confiar inteiramente nas coisas que nos enganaram uma vez”. No entanto, esses erros em geral são cometidos quando algo está distante demais e é muito pequeno para ser corretamente visto. Havia outras coisas das quais, embora derivassem dos mesmos sentidos, Descartes simplesmente não era capaz de duvidar: por exemplo, de que estava sentado ao pé do fogo usando um manto de inverno. Não podia lançar dúvida sobre esses fatos a menos que fosse um louco, e recusava-se a tomar os loucos por modelo. Havia ainda a possibilidade de que não estivesse em absoluto sentado junto ao fogo, mas sim adormecido e sonhando em sua cama. Sem o benefício da visão retrospectiva, parece não haver nenhum meio conclusivo que nos permita determinar se ele estava acordado ou dormindo. Muitos de nós já tivemos sonhos intensamente vívidos de cuja realidade estávamos convencidos até que acordamos. A resposta de Descartes para esse problema é admitir que está de fato sonhando, pois há coisas sobre as quais ele não pode se enganar mesmo dormindo. Nem nossas visões mais fantásticas são inteiramente novas. Os unicórnios, que só existem na imaginação, não deixam por isso de ser produto de coisas reais – isto é, chifres e cavalos. Sem dúvida chifres e cavalos poderiam também ser imaginários, mas ainda assim teriam de ser compostos de cores reais. De mais a mais, dois mais três são cinco, quer estejamos acordados ou dormindo. Descartes argumenta, porém , que um Deus onipotente poderia ter feito com que não houvesse terra nem céu, nem forma, tamanho , cor ou lugar, mas que, não obstante, essas coisas parecessem existir. Aliás, Deus poderia também ter levado Descartes a cometer um erro cada vez que somava dois mais três. Presumivelmente Deus tem mais o que fazer, mas o filósofo imagina haver um demônio malévolo, supremamente poderoso e astuto, que dedica todas as suas energias a enganar pobres filósofos pondo imagens falsas diante deles e confundindo-lhes os cálculos. Esse estratagema fornece a Descartes uma dúvida completamente “hiperbólica” – a idéia de que todas as crenças que alimenta poderiam de fato ser falsas e todas as suas percepções ilusórias.
A saída fácil seria duvidar de existência desse demônio, mas Descartes opta por encará-lo. Mesmo que admita estar nas garras do demônio, ainda há algo a cujo respeito não pode ser enganado: o fato de que ele, Descartes, existe. Em uma das frases mais famosas tanto da filosofia quanto do latim, declarou, “Cogito ergo sum”: “Penso, logo existo”. Não lhe é possível duvida da própria existência, pois para duvidar é preciso existir.
Lamentavelmente, Descartes não foi capaz de reconstruir o conhecimento a partir desse fundamento. O cogito era verdadeiro, ele sustentou, porque era uma crença “clara e distinta”, mas suas tentativas de definir o que torna uma idéia clara e distinta tiveram resultados bastante vagos. Ao que parece, Descartes tinha em mente aquelas crenças tão claramente corretas que devem ter sido postas diante de nós por Deus, e Ele não desejaria nos enganar. Por exemplo, podemos ter certeza de que a matéria sempre tem dimensões e de que o triângulo sempre tem três lados. Não podemos pensar a matéria sem imaginá-la dotada de dimensões. Tampouco podemos conceber um triângulo sem imaginar que tem três lados. Mas se Deus deve endossar essas “crenças claras e distintas”, precisamos primeiro ter certeza de que Ele existe. Descartes argumentou que, assim como a idéia de triângulo significa a posse de três lados, a própria idéia de Deus assegura sua existência. Essa é uma variante do famigerado “argumento ontológico” – cujo fundamento é: se imaginamos Deus não existindo não estamos imaginando Deus, mas algo inferior a Ele. Para um ser supostamente perfeito, a não existência é realmente uma imperfeição. É uma matéria de apreensão clara e distinta que se imaginamos verdadeiramente um ser onipotente, onisciente e imortal, temos também de imaginar que ele existe. Os argumentos ontológicos fracassam por várias razões, e uma é que não são aplicáveis exclusivamente a Deus. Se imaginássemos um ser humano perfeito, por exemplo, a existência teria presumivelmente de estar incluída entre seus atributos, mas isso não significa que esse sujeito perfeito anda pela Terra em algum lugar. Mesmo sem esse problema, a argumentação de Descartes é circular, pois a veracidade de nossas percepções claras e distintas repousa sobre algo, que chamamos de Deus, que só ganha crédito ela própria por ser uma percepção clara e distinta.
É mais proveitoso inspecionar as bases sobre as quais somos capazes de duvidar. O cogito de Descartes estava na trilha certa, pois toda dúvida deve se basear em algo que não é em si mesmo objeto de dúvida. Por exemplo, se suspeito que o “Picasso” que me venderam é uma falsificação, é porque acredito que ele seja diferente das obras autênticas expostas nas coleções de arte. Da mesma maneira, posso duvidar do valor que aparece na minha conta no restaurante porque acredito ou ter pedido o item mais barato do cardápio ou que os garçons são capazes de cometer erros. Precisamos de fundamentos para a dúvida, e não podemos duvidar desses fundamentos ao mesmo tempo em que os usamos para duvidar de outras coisas. Em outras palavras, se duvidamos das dúvidas, é que não duvidamos de maneira alguma. Onde quer que haja ceticismo, deve haver ao mesmo tempo algo a cujo respeito não somos céticos. A dúvida sensata só pode ser parcial, sempre, e isso impõe limites severos à capacidade que tem o demônio de nos enganar. Podemos estar errados sobre certas coisas, mas não podemos estar errados sobre tudo – isso nos privaria não só dos meios de corrigir nossos erros, mas de qualquer base a partir da qual pudéssemos dizer que um erro foi cometido depois que o demônio tiver revelado a “verdade”. Esse demônio enfeitiçou os sentidos de Descartes mais do que ele supunha. Mas em vez de induzi-lo a superestimar o que ele pensava conhecer, levou-o a subestimar suas próprias capacidades como sujeito cognoscente.
Para nos enganar, o demônio tem de estar de posse de uma realidade que reconheceríamos e admitiríamos quando o véu da percepção fosse retirado. Mas isso exige um corpo de conhecimento que podemos considerar fixo, para fazer a distinção depois que o virmos. O mundo do demônio imaginado por Descartes é tal que nele não há Picassos autênticos e nem garçons nem clientes jamais fazem suas contas corretamente.. Mesmo em um cenário como esse, existem coisas como falsificações reais e contas corretas – o único problema é que não as identificamos quando as vemos. Que elas existem, contudo, é algo de que não podemos duvidar, pois de outro modo não haveria nenhuma resposta correta contrariada por nossos juízos. Ao nos negar a possibilidade de alguma vez estarmos corretos, porém, o demônio e sua realidade passam a ser irrelevantes.
O mundo verdadeiro supostamente ocultado de nós pelo demônio está para a “realidade” como a “realidade” está para nossos sonhos. A vítima do demônio encontra-se em uma posição semelhante à das pessoas que afirmam ter por vezes “acordado” em um sonho e percebido seu impasse. Se tenho um sonho em que me dou conta de que estou sonhando, essa percepção também é parte do sonho. Assim, como posso saber se realmente me dei conta de que estava sonhando ou se meramente sonhei que o fiz? Digamos que esse pensamento também me ocorra dentro de meu sonho; isso não fará nenhuma diferença, pois é tão parte do sonho como tudo o mais. Minha percepção não pode ser verdadeira, pois, quando estou sonhando, tudo que penso, digo e faço ocorre no contexto do sonho. Meus pensamentos oníricos não podem penetrar no mundo real para serem verdadeiros ou falsos. Essa incapacidade seria partilhada pelos pensamentos que temos quando acordados se eles fossem todos resultado do engano do demônio. Nossos pensamentos seriam incapazes de efetivamente se referirem ao mundo real e oculto da verdade, conhecido unicamente por nosso enganador. Não poderiam estar errados acerca desse mundo porque não estão, e nunca podem estar, relacionados a ele.
Essa discussão da possibilidade do conhecimento pode parecer hermética e muito distante da vida comum, mas tem conseqüências muito reais para nossas dúvidas e preocupações cotidianas. Um mundo em que todos os nossos amantes poderiam estar nos traindo, por exemplo, e em que jamais somos capazes de descobri-lo, não é o mundo em que vivemos. Quando nossas dúvidas superam nossa capacidade de acreditar na evidência de nossos sentidos, desprezamos essas mesmas desconfianças e zombamos delas. Poderíamos, é claro, ser extremamente azarados e nos envolver com uma série de parceiros adúlteros. No entanto, o fato de podermos descobrir e reconhecer a traição significa que não deveríamos descrer da fidelidade. Cada nova dúvida (nesse caso, cada nova infidelidade que aceitamos como verdade e não como boato) torna-se por sua vez fundamento para crença. Se confiamos em nosso poder de dedução quando ele revela o logro, deveríamos confiar igualmente nele quando não o faz.
O próximo artigo desta série é O GARFO DE HUME
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