O material apresentado nesta seção do Blog, deve ser lido e considerado em seu contexto histórico e sua relevância para a formação do pensamento social, político, e até o teológico da sociedade moderna e dos diversos momentos da história da humanidade. Isto, entretanto, não significa dizer que subscrevo todas as idéias contidas nos textos e livros aqui publicados, mas apenas que reconheço a importância que exerceram e exercem sobre a história de todo o pensamento ocidental. Creio que todos terão o discernimento e filtro característicos daqueles que possuem a mente de Cristo, levando ainda, em consideração, o ensinamento de 1 Tessalonicenses 5:21 - Examinai tudo. Retende o bem.


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sábado, junho 24, 2006

A LANÇA DE LUCRÉCIO - O Domínio do Hipotético



Lucrécio, ou Titus Lucretius Carus, foi o poeta latino que escreveu o poema filosófico Da Natureza das Coisas. Nascido por volta de 94 a.C., pouco se conhece dele afora sua obra mais famosa. Antes de enlouquecer por força de uma poção do amor e cometer suicídio em 55 a.C., Lucrécio concebeu uma prova que nos permitiria saber se o universo é finito ou infinito sem termos de percorrer todo o trajeto até seus limites para um circuito de inspeção. Supondo que o universo tivesse fim, perguntou Lucrécio, o que aconteceria se alguém fosse até lá, até sua beirada, e atirasse uma lança? De duas, uma: ou a lança avançaria, ou ricochetearia. De uma maneira ou de outra, isso significaria que há algo além da beirada do universo – um objeto para se interpor ao movimento da lança ou mais espaço para ela percorrer. Portanto, ele concluiu, o espaço não pode ter um limite e deve ser infinito.

Lucrécio estava realizando um experimento mental, que difere do tipo de experimentos efetuados pelos cientistas em virtude de ocorrerem na mente e não no laboratório. Como os experimentos de laboratório, os do tipo filosófico procuram isolar a qualidade que se deseja investigar. Para verificar, por exemplo, se telefones celulares danificam células cerebrais, os pesquisadores levam em conta que muitos outros fatores também podem causar danos ao cérebro – como envelhecimento natural, traumas, abuso de álcool. Para provar que telefones celulares são perigosos (ou totalmente inofensivos), precisarão eliminar a chance de que esses outros fatores causem mais dano que o normal no curso do experimento. Experimentos mentais hipotéticos, ou cenários hipotéticos, funcionam basicamente da mesma maneira – isolando as variáveis decisivas para verificar o que acontece quando algo muda, enquanto tudo o mais permanece igual. O isolamento, contudo, pode fazer coisas estranhas com as idéias.

Na comédia de Jack Lemmon, Don Juan era Aprendiz (1963), Robin e David estão pensando em se casar, mas começam a duvidar da durabilidade de sua união. Não tendo certeza de que se amam verdadeiramente, a noiva trama uma maneira simples de pôr as coisas em pratos limpos: os dois devem se abster do sexo por um período e ver se, ainda assim, são capazes de sustentar sua relação. O que está sendo posto à prova aqui é uma afirmação absoluta: a de que o amor é capaz de sobreviver a qualquer privação – inclusive a camas separadas. O casal raciocina que se não conseguirem conviver com esse arranjo, estará provado que não há amor verdadeiro entre eles. Lemmon, o senhorio dos dois (que, sem que o noivo o saiba, está de olho em Robin) dá conselhos a David sobre como moderar sua libido. À medida que a maquinação de Lemmon se desdobra, porém, as brigas em que os noivos se enredam ilustram não a prudência de suas dúvidas, mas as ciladas potenciais desse tipo de experimento. Um teste mais útil de sua fidelidade mútua poderia ter sido viver exatamente como o fariam quando casados. Ao manter o sexo fora do experimento, eles alteraram a natureza da própria coisa que estavam querendo pôr à prova – seu relacionamento. Se desejavam apaziguar – ou confirmar – seus temores, o jovem casal teria feito melhor passando um longo período juntos, em vez de ficar correndo do quarto de um para o do outro. No fim das contas, tudo que os noivos conseguiram testar foi sua tolerância ao celibato.

O amor vê-se muitas vezes como objeto de experimentos desse tipo, embora, em geral, ao contrário do casal de Lemmon, nós os confinemos à nossa imaginação. Inseguros de nossos sentimentos, remoemos perguntas como: “Será que ainda a amarei daqui a vinte anos? E se ele fosse velho e grisalho? Esse ela fosse vítima de um terrível acidente?”. Pensamentos assim são ótimos até um limite, mas a consideração dessas situações hipotéticas pode nos deixar indagando se mudamos as variáveis de nosso relacionamento com alguém ou se simplesmente já não estamos falando da mesma pessoa. É claramente inútil perguntar se ainda amaríamos uma pessoa se ela se tornasse outra, inteiramente diferente. Ao mesmo tempo, tendemos a sentir que o verdadeiro amor deve dar espaço a mudanças de circunstâncias. A dificuldade é identificar o ponto crítico até o qual podemos pôr um conceito à prova, antes que, de tão distorcido, ele se torne irreconhecível.

Esse é um problema relevante para os filósofos porque eles tratam de generalidades e proposições universais – e para que uma proposição ou teoria seja universalmente válida é preciso demonstrar que ela se sustenta mesmo sob condições extraordinárias. Condições desse tipo predominam particularmente em discussões filosóficas sobre a identidade pessoal – isto é, a questão de haver um não em si mesmo que persiste através do tempo, fazendo com que Julie Smith em seus cinqüenta anos de idade seja a mesma pessoa que o bebê Julie Smith que vemos no álbum de família. Os filósofos às vezes são acusados de não passarem de cientistas frustrados. Um estudo da literatura recente sobre identidade pessoal, por outro lado, leva à conclusão ligeiramente diferente de que eles são escritores de ficção científica frustrados. Se nos experimentos mentais dos filósofos os sujeitos costumavam não fazer nada de mais árduo que uma viagem de bonde, hoje em dia eles tendem a se ver teletransportados através do espaço, desintegrando-se como uma ameba ou sendo submetidos a transplantes de cérebro.

O debate sobre identidade pessoal começa com a antiga história da “Nau de Teseu”. Durante a longa viagem dessa nau, suas pranchas estragadas foram sendo substituídas uma a uma. Pergunta-se então: seria essa embarcação a mesma que começou a viagem? Como o processo de mudança foi gradual, tendemos normalmente a dizer que a relação histórica entre as duas embarcações é suficiente para que julguemos que são exatamente a mesma. Essa justificação da identidade pela “continuidade” pode ser derrubada por um simples contra-exemplo hipotético. Que diríamos se, por toda a viagem, a nau de Teseu tivesse sido seguida por uma outra, tripulada por carpinteiros, e estes tivessem recolhido uma a uma as pranchas descartadas da primeira nau e as usado par construir uma réplica exata dela? Nesse caso, haveria uma rival aspirante ao título de “nau de Teseu”, e esse novo competidor tem mais direitos, já que é composto dos mesmíssimos pedaços de madeira que o barco que deixou o porto muitos anos antes. Não importa que essa terceira embarcação só possa existir em nossa imaginação – o fato que essa terceira embarcação só possa existir em nossa imaginação – o fato de ela ser possível significa que devemos considerá-la. A nau-réplica representa um contra-exemplo de peso para a teoria da identidade baseada na continuidade precisamente porque a “nau de Teseu” que retorna não sofreu alteração alguma em sua natureza pelo fato de ter adquirido um simulacro. Simplesmente introduzimos um terceiro elemento que altera as variáveis de sua situação.

Nem sempre o quadro é tão claro. Muitas pessoas conseguem levar vidas relativamente normais apesar de terem sofrido danos catastróficos que as deixaram com apenas um hemisfério cerebral em funcionamento. Dando uma feição futurística a esses casos, o filósofo inglês David Wiggins (1933-) indagou o que seria do seu eu se seu cérebro fosse dividido em dois hemisférios e estes fossem em seguida transplantados para dois corpos diferentes. A pergunta de Wiggins desafia todos os que acreditam que o cérebro é a sede do eu. Imagine que você fosse acometido por uma doença que destruísse seu corpo e um de seus hemisférios cerebrais. Como estamos no futuro, existe tecnologia para preservar o hemisfério restante e transplanta-lo para um novo corpo. Portanto, se você se submetesse à operação, não seria descabido que esperasse – tendo em vista o registro de sucessos anteriores nesse campo – despertar na sala de recuperação quando tudo tivesse terminado. Você poderia se encontrar num corpo desconhecido, mas mesmo assim ele seria você, já que o novo corpo possui seu antigo cérebro. De início, seus amigos talvez estranhassem um pouco a mudança, mas acabariam se acostumando à sua nova forma. Agora imagine um desdobramento diferente: seu cirurgião lhe diz que poderá de fato preservar ambos os hemisférios de seu cérebro, mas será preciso separá-los e implanta-los em dois corpos doadores diferentes. É possível que, antes de a anestesia começa a fazer efeito, você tenha tempo de se perguntar em qual dos corpos vai despertar. É claro que não lhe seria possível despertar nos dois corpos, já que isso implicaria passar a ser duas pessoas ao mesmo tempo. Seria igualmente estranho se você não despertasse em nenhum dos corpos. Se a operação é considerada um sucesso quando um único hemisfério sobrevive, como então, pergunta Wiggins, um “duplo” sucesso poderia ser considerado um fracasso? As estatísticas não forneceriam muito alento ao futuro paciente.

Embora seu eu possa sobreviver à operação, o que entendemos por individualidade talvez não sobrevivesse. Estamos habituados a conceber o eu como uma unidade, ou pelo menos a acreditar que se, no futuro, formos idênticos a alguma versão mais antiga de nós mesmos, haverá apenas um eu como aquele em qualquer momento dado. Wiggins parece nos mostrar, entretanto, que, pelo menos em teoria, a pessoa que Julie Smith é em 2001 poderia ser “a mesma pessoa na forma de” duas pessoas separadas em 2051. Fica claro que não é o eu do paciente que está sendo posto à prova, mas nosso conceito de individualidade. Nosso objetivo inicial era descobrir as circunstâncias mais extremas em que dois indivíduos podem ser a mesma pessoa, mas acabamos alterando a definição do que significa ser “a mesma pessoa”. Seria razoável objetar que a situação hipotética proposta por Wiggins não diz respeito ao que entendemos usualmente por individualidade, e por isso não se aplica a noções comuns de identidade pessoal. Nossos conceitos cotidianos destinam-se ao uso cotidiano e não têm culpa se não conseguem resistir a experimentos mentais fantásticos inventados por filósofos. Essa seria uma objeção justa se a situação hipotética não provocasse uma reação em nós e não nos deixasse insatisfeitos com nossa concepção tradicional de identidade. Aplicar um conceito comum – ou qualquer conceito – apenas em contextos que lhe são favoráveis é pôr o sentimentalismo antes da verdade.

Como é pouco provável que venhamos a nos encontrar no impasse que Waggins descreve, talvez não fiquemos excessivamente aflitos admitindo sua idéia. Já no caso de outros conceitos, como um amor, poder ser que não sejamos tão cordatos. Parte do problema com situações hipotéticas é que muitas vezes é difícil perceber onde as variáveis terminam e onde começa a natureza essencial do conceito que estamos testando. Em muitos casos não haverá nenhuma linha divisória clara entre os dois. O que realmente sabemos é que, quando começamos a especular sobre questões que nos tocam de perto, é fácil esquecer onde começamos. Ao submetermos nosso amor por alguém a testes teóricos, podemos não perceber quando o refletor se desloca do ser amado par um invento de nossa imaginação. Quando descobrimos que nossos sentimentos são desmentidos em face de algo que só existe hipoteticamente, conviria nos certificarmos de que o exame a que os submetemos foi imparcial. Quando um conceito, crença ou emoção não passa num teste que lhe prescrevemos, é porque algumas vezes – como Robin, David e Jack Lemmon – testamos de fato uma coisa completamente diferente. Assim como seria disparatado acusar os fabricantes de um cadeado “inquebrantável” se um assaltante pusesse abaixo a porta inteira, não deveríamos esperar que um conceito fizesse a guerra de outro.


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