A NAVALHA DE OCCAM - As Virtudes da Simplicidade
Diante de dois filósofos discutindo um complicado problema filosófico, um ouvinte talvez ficasse curioso em razão de tanto barulho. Poderia se perguntar por que eles não eram capazes de concordar simplesmente em que a explicação mais simples é a melhor e parar por aí. De fato, a maioria dos filósofos endossaria esse parecer. O princípio conhecido como “navalha de Occam” é assim chamado em homenagem a Guilherme de Occam (ou William of Ockham), o monge medieval que a brandiu com tanto entusiasmo. Occam foi o autor de uma sugestão famosa: as entidades não deveriam ser multiplicadas além do necessário. Uma formulação da “navalha” agradável aos cientistas atuais – para não mencionar as pessoas dotados de senso comum – seria a seguinte: quando duas teorias concorrentes podem ser ambas adequadas para explicar um dado fenômeno, deve-se preferir a mais simples.
Occam nasceu em 1285 na Aldeia de Occam em Surrey, ou na de mesmo nome em Yorkshire, Inglaterra. Pouco se sabe sobre seus primeiros anos, mas após cursar o seminário da ordem franciscana ele iniciou um curso de teologia na Universidade de Oxford. Seus comentários controversos sobre as Sentenças de Pedro Lombardo – o manual religioso padrão da época – logo ofenderam os professores de filosofia de Oxford. Enquanto Agostinho de Hipona (354-430 d.C.) considerava os sacramentos cristãos meros sinais visíveis da graça invisível de Deus, a explicação de Lombardo os promovia a causas reais de favor divino. Occam, esposando a visão agostiniana, recusou-se a admitir que Deus precisava de intervenção de mortais para operar Sua vontade. Após ser publicamente acusado de herético, foi obrigado a deixar a universidade sem obter o grau de mestre. Completou seus estudos em Paris, onde suas idéias novamente despertaram oposição e lhe valeram uma advertência das autoridades docentes. Identificando nele um agitador, o Papa João XXII convocou Occam a Avignon , onde, na prática, prendeu o monge em um convento durante quatro anos. Mesmo ali Occam continuou a procurar controvérsia, afirmando que deveria ser permitido aos franciscanos renunciar aos bens terrenos. Em 1328, Occam fugiu para Munique com dois outros membros de sua ordem. Por esse ato de desacato, o papa João XXII decretou imediatamente sua excomunhão. Em Munique, Occam viveu sob a proteção do igualmente recalcitrante Imperador Luís IV, a quem teria supostamente proposta: “Se me defenderdes com a espada, e vos defenderei com a pena.” Enredando-se ainda mais na política eclesiástica, defendeu fervorosamente a causa do imperador em sua luta com o papado pelo poder. Antes de finalmente sucumbir em 1349 ao que era possivelmente a peste negra, Occam encontrou tempo para analisar minuciosamente os editos de João XXII e – sem dúvida com grande satisfação – declarou-o um herético e um pseudopapa.
É notório que foi por razões alheias à simplicidade que Occam propôs sua tese mais famosa: que as criaturas e os objetos não possuem essências dotadas de existência independente. A visão dominante na época (derivada de Platão) era que, além de Rex, Totó e todos os demais cachorros, existia também um objeto – “Cachorro” – à cuja imagem todos os nossos cachorros , em suas diferente s formas e tamanhos, haviam sido feitos. Se não é possível encontrar Cachorro nesta terra, isso não tem nenhuma importância, porque Cachorro, juntamente com todas as essências, reside na mente do Criador, onde caça alegremente o “Gato” e rói o “Osso”. Deixar de lado essas essências existentes certamente contribui para uma visão mais simples do universo, mas a verdadeira preocupação de Occam era que elas impunham uma limitação à liberdade criativa de Deus. Segundo ele, Deus, ao moldar o mundo, não operou a partir de idéias preconcebidas, mas esculpiu a seu bel-prazer. Isso não impede que certos grupos de objetos se assemelhem uns aos outros de várias maneiras, o que permite aos homens formar conceitos universais como “Homem”, “Gato” ou “Cavalo”. É aí que a navalha de Occam entra em ação, pois podemos falar dessas generalidades sem apelar para “idéias na mente do Criador”. Termos gerais, sustentou Occam, são símbolos que representam uma “intenção” da mente de agrupar vários objetos comuns. Como não há nenhuma necessidade de invocar um objeto extra – por exemplo, a essência de “Carvalho” a que esse ter se referiria -, o fato é que tal objeto não existe. Essa idéia, conhecida como “nominalismo”, foi a maior façanha teórica operada por Occam com o uso da “navalha”. Infelizmente ele não parou por aí. Usou também sua navalha para se desvencilhar da existência do movimento – que pode ser descrito adequadamente, afirmou, como o reaparecimento de uma coisa num lugar diferente. Pelo menos nesse sentido, Occam talvez não tenha sido a melhor propaganda para seu próprio princípio.
Em sua forma mais pura, a “navalha” é um método de trabalho, não uma apreensão da natureza do mundo. Como tal, não pode ser refutada por um caso em que a explicação mais simples seja demonstravelmente falsa. Como qualquer conjunto de fatos pode ser explicado por um número indefinido de hipóteses, no mínimo poupa-se tempo se for testada primeiro a hipótese mais simples. Quando, por exemplo, uma pessoa recusa reiteradamente um convite seu para um encontro, pode ser porque ela anda superocupada ultimamente, ou porque aceitar a deixaria nervosa demais, ou ainda porque você ainda não sugeriu um local atraente. A explicação mais simples, contudo – e a presunção normal nessas circunstâncias -, é que a tal pessoa não gosta de você. Até que ela expresse o contrário, você só tem a ganhar admitindo isso, se quiser poupar energia.
Uma outra aplicação, mais controversa, faz da navalha de Occam mais que uma mera regra geral nem sempre confiável. Como o filósofo Ludwig Wittgenstein formulou: “Uma roda que gira sem que nada gire com ela não é parte do mecanismo.” Em outras palavras, sempre que alguma coisa é desnecessária para a compreensão de determinado processo, há razões para afirmar que ela não desempenha nenhum papel nele. Por exemplo, filósofos behavioristas da mente afirmam que nossas palavras e ações podem ser explicadas sem que ponhamos em jogo experiências psicológicas, como intenções, desejos e sentimentos. Sem essas entidades, a explicação da ação humana fica muito mais simples, e assim sendo, com uma navalhada particularmente implacável, os behavioristas as aboliram. Em conseqüência, foram acusados de “fingir analgesia” – de negar para todos os propósitos a existência da consciência. Embora os mais cabeças-duras deles aceitassem a acusação com orgulho, que behavioristas mais moderados afirmaram que a consciência (seja lá o que for isso) não desempenha papel algum na explicação do modo como agimos. Dessa maneira, a “navalha” não é necessariamente uma ferramenta para a rejeição daquelas entidades que se multiplicaram desnecessariamente, mas uma mera lâmina que corta e separa entidades de modo a que possam ser postas em seu devido lugar. Por exemplo, os darwinistas acreditam que a evolução explica nossa existência e que citar a influência de Deus, é introduzir uma entidade supérflua. Declaram também que não pretendem refutar a existência de Deus. Sustentam que, embora Deus possa existir, não desempenhou nenhum papel direto na criação da raça humana. Esse rebaixamento pode ou não aplacar os religiosos. Como sempre que a “navalha” é usada, nada garante que a nova condição de uma entidade não será tão repugnante para seus entusiastas quanto teria sido a sua rejeição cabal.
Devemos ter cuidado de só usar a navalha de Occam para podar os elementos dispensáveis de uma teoria explanatória – isto é, os que não fazem nenhum trabalho útil na explicação dos fenômenos. Ela não deveria ser usada par cortar fora os próprios fenômenos a serem explicados (quebrando essa regra, os teóricos poderiam tornar seu trabalho realmente muito fácil). Mesmo os behavioristas mais extremados não incorrem nesse erro - não cortaram fora nosso comportamento, por assim dizer. No entanto, eles simplificaram sua teoria à custa de um outro fenômeno digno de consideração – a natureza subjetiva dos estados mentais como imaginar ou sentir dor. Os estados mentais que eles negam, exigiriam explicação mesmo que não desempenhassem um papel no comportamento. Sua perda é um preço caro demais a se pagar pela simplicidade.
Convém notar que o princípio de Occam contém uma subcláusula implícita: “Todas as outras coisas sendo iguais.” A explicação mais simples só deve ser preferida a uma mais complexa se, sob outros aspectos, ambas tiverem poderes explanatórios equivalentes. Se uma teoria mais complexa é capaz de explicar coisas muito melhor que uma simples, deveríamos preferi-la. Occam não valorizava a simplicidade acima de tudo, meramente acreditava que ela nos dava bases para escolher entre duas explicações igualmente adequadas. Para a consternação dos historiadores de poltrona, Occam nunca usou sua “navalha” para resolver um enigma escolástico famoso, embora apócrifo: a questão de quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete. Usando a “navalha”, a resposta mais simples – e portanto a “correta” – é, claro, só um.
Não deixe de ler o próximo artigo desta série a ser postado em breve: O PRÍNCIPE DE MAQUIAVEL.
Occam nasceu em 1285 na Aldeia de Occam em Surrey, ou na de mesmo nome em Yorkshire, Inglaterra. Pouco se sabe sobre seus primeiros anos, mas após cursar o seminário da ordem franciscana ele iniciou um curso de teologia na Universidade de Oxford. Seus comentários controversos sobre as Sentenças de Pedro Lombardo – o manual religioso padrão da época – logo ofenderam os professores de filosofia de Oxford. Enquanto Agostinho de Hipona (354-430 d.C.) considerava os sacramentos cristãos meros sinais visíveis da graça invisível de Deus, a explicação de Lombardo os promovia a causas reais de favor divino. Occam, esposando a visão agostiniana, recusou-se a admitir que Deus precisava de intervenção de mortais para operar Sua vontade. Após ser publicamente acusado de herético, foi obrigado a deixar a universidade sem obter o grau de mestre. Completou seus estudos em Paris, onde suas idéias novamente despertaram oposição e lhe valeram uma advertência das autoridades docentes. Identificando nele um agitador, o Papa João XXII convocou Occam a Avignon , onde, na prática, prendeu o monge em um convento durante quatro anos. Mesmo ali Occam continuou a procurar controvérsia, afirmando que deveria ser permitido aos franciscanos renunciar aos bens terrenos. Em 1328, Occam fugiu para Munique com dois outros membros de sua ordem. Por esse ato de desacato, o papa João XXII decretou imediatamente sua excomunhão. Em Munique, Occam viveu sob a proteção do igualmente recalcitrante Imperador Luís IV, a quem teria supostamente proposta: “Se me defenderdes com a espada, e vos defenderei com a pena.” Enredando-se ainda mais na política eclesiástica, defendeu fervorosamente a causa do imperador em sua luta com o papado pelo poder. Antes de finalmente sucumbir em 1349 ao que era possivelmente a peste negra, Occam encontrou tempo para analisar minuciosamente os editos de João XXII e – sem dúvida com grande satisfação – declarou-o um herético e um pseudopapa.
É notório que foi por razões alheias à simplicidade que Occam propôs sua tese mais famosa: que as criaturas e os objetos não possuem essências dotadas de existência independente. A visão dominante na época (derivada de Platão) era que, além de Rex, Totó e todos os demais cachorros, existia também um objeto – “Cachorro” – à cuja imagem todos os nossos cachorros , em suas diferente s formas e tamanhos, haviam sido feitos. Se não é possível encontrar Cachorro nesta terra, isso não tem nenhuma importância, porque Cachorro, juntamente com todas as essências, reside na mente do Criador, onde caça alegremente o “Gato” e rói o “Osso”. Deixar de lado essas essências existentes certamente contribui para uma visão mais simples do universo, mas a verdadeira preocupação de Occam era que elas impunham uma limitação à liberdade criativa de Deus. Segundo ele, Deus, ao moldar o mundo, não operou a partir de idéias preconcebidas, mas esculpiu a seu bel-prazer. Isso não impede que certos grupos de objetos se assemelhem uns aos outros de várias maneiras, o que permite aos homens formar conceitos universais como “Homem”, “Gato” ou “Cavalo”. É aí que a navalha de Occam entra em ação, pois podemos falar dessas generalidades sem apelar para “idéias na mente do Criador”. Termos gerais, sustentou Occam, são símbolos que representam uma “intenção” da mente de agrupar vários objetos comuns. Como não há nenhuma necessidade de invocar um objeto extra – por exemplo, a essência de “Carvalho” a que esse ter se referiria -, o fato é que tal objeto não existe. Essa idéia, conhecida como “nominalismo”, foi a maior façanha teórica operada por Occam com o uso da “navalha”. Infelizmente ele não parou por aí. Usou também sua navalha para se desvencilhar da existência do movimento – que pode ser descrito adequadamente, afirmou, como o reaparecimento de uma coisa num lugar diferente. Pelo menos nesse sentido, Occam talvez não tenha sido a melhor propaganda para seu próprio princípio.
Em sua forma mais pura, a “navalha” é um método de trabalho, não uma apreensão da natureza do mundo. Como tal, não pode ser refutada por um caso em que a explicação mais simples seja demonstravelmente falsa. Como qualquer conjunto de fatos pode ser explicado por um número indefinido de hipóteses, no mínimo poupa-se tempo se for testada primeiro a hipótese mais simples. Quando, por exemplo, uma pessoa recusa reiteradamente um convite seu para um encontro, pode ser porque ela anda superocupada ultimamente, ou porque aceitar a deixaria nervosa demais, ou ainda porque você ainda não sugeriu um local atraente. A explicação mais simples, contudo – e a presunção normal nessas circunstâncias -, é que a tal pessoa não gosta de você. Até que ela expresse o contrário, você só tem a ganhar admitindo isso, se quiser poupar energia.
Uma outra aplicação, mais controversa, faz da navalha de Occam mais que uma mera regra geral nem sempre confiável. Como o filósofo Ludwig Wittgenstein formulou: “Uma roda que gira sem que nada gire com ela não é parte do mecanismo.” Em outras palavras, sempre que alguma coisa é desnecessária para a compreensão de determinado processo, há razões para afirmar que ela não desempenha nenhum papel nele. Por exemplo, filósofos behavioristas da mente afirmam que nossas palavras e ações podem ser explicadas sem que ponhamos em jogo experiências psicológicas, como intenções, desejos e sentimentos. Sem essas entidades, a explicação da ação humana fica muito mais simples, e assim sendo, com uma navalhada particularmente implacável, os behavioristas as aboliram. Em conseqüência, foram acusados de “fingir analgesia” – de negar para todos os propósitos a existência da consciência. Embora os mais cabeças-duras deles aceitassem a acusação com orgulho, que behavioristas mais moderados afirmaram que a consciência (seja lá o que for isso) não desempenha papel algum na explicação do modo como agimos. Dessa maneira, a “navalha” não é necessariamente uma ferramenta para a rejeição daquelas entidades que se multiplicaram desnecessariamente, mas uma mera lâmina que corta e separa entidades de modo a que possam ser postas em seu devido lugar. Por exemplo, os darwinistas acreditam que a evolução explica nossa existência e que citar a influência de Deus, é introduzir uma entidade supérflua. Declaram também que não pretendem refutar a existência de Deus. Sustentam que, embora Deus possa existir, não desempenhou nenhum papel direto na criação da raça humana. Esse rebaixamento pode ou não aplacar os religiosos. Como sempre que a “navalha” é usada, nada garante que a nova condição de uma entidade não será tão repugnante para seus entusiastas quanto teria sido a sua rejeição cabal.
Devemos ter cuidado de só usar a navalha de Occam para podar os elementos dispensáveis de uma teoria explanatória – isto é, os que não fazem nenhum trabalho útil na explicação dos fenômenos. Ela não deveria ser usada par cortar fora os próprios fenômenos a serem explicados (quebrando essa regra, os teóricos poderiam tornar seu trabalho realmente muito fácil). Mesmo os behavioristas mais extremados não incorrem nesse erro - não cortaram fora nosso comportamento, por assim dizer. No entanto, eles simplificaram sua teoria à custa de um outro fenômeno digno de consideração – a natureza subjetiva dos estados mentais como imaginar ou sentir dor. Os estados mentais que eles negam, exigiriam explicação mesmo que não desempenhassem um papel no comportamento. Sua perda é um preço caro demais a se pagar pela simplicidade.
Convém notar que o princípio de Occam contém uma subcláusula implícita: “Todas as outras coisas sendo iguais.” A explicação mais simples só deve ser preferida a uma mais complexa se, sob outros aspectos, ambas tiverem poderes explanatórios equivalentes. Se uma teoria mais complexa é capaz de explicar coisas muito melhor que uma simples, deveríamos preferi-la. Occam não valorizava a simplicidade acima de tudo, meramente acreditava que ela nos dava bases para escolher entre duas explicações igualmente adequadas. Para a consternação dos historiadores de poltrona, Occam nunca usou sua “navalha” para resolver um enigma escolástico famoso, embora apócrifo: a questão de quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete. Usando a “navalha”, a resposta mais simples – e portanto a “correta” – é, claro, só um.
Não deixe de ler o próximo artigo desta série a ser postado em breve: O PRÍNCIPE DE MAQUIAVEL.
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