O material apresentado nesta seção do Blog, deve ser lido e considerado em seu contexto histórico e sua relevância para a formação do pensamento social, político, e até o teológico da sociedade moderna e dos diversos momentos da história da humanidade. Isto, entretanto, não significa dizer que subscrevo todas as idéias contidas nos textos e livros aqui publicados, mas apenas que reconheço a importância que exerceram e exercem sobre a história de todo o pensamento ocidental. Creio que todos terão o discernimento e filtro característicos daqueles que possuem a mente de Cristo, levando ainda, em consideração, o ensinamento de 1 Tessalonicenses 5:21 - Examinai tudo. Retende o bem.


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segunda-feira, maio 29, 2006

A INQUIRIÇÃO SOCRÁTICA - A revelação da Verdade pela Interrogação

Para deleite dos políticos e aflição dos filósofos, consegue-se convencer muita gente de praticamente qualquer coisa, contanto que não se empregue uma argumentação racional. Os antigos sofistas gregos, como Protágoras e Górgias, no entanto, lidavam com um público mais receptivo. No século V a.C., poucos divertimentos atraíam mais os nobres que ouvir debates entre grandes oradores. Adquirir os fundamentos da arte da retórica junto a um sofista profissional era parte essencial da educação dos jovens aristocratas, como participantes do sistema democrático da época. Se as classes políticas de hoje rejeitaram as virtudes de uma educação clássica, fazem uma exceção bastante deplorável no caso da sofística. No momento em que escrevo, aspirantes a porta-vozes do Partido Trabalhista Britânico, atualmente no governo, estão recebendo treinamentos especiais em fins de semana para aprender como evitar responder a perguntas diretas. Um exercício avançado envolve um exame face a face em que se pergunta simplesmente ao candidato: “Que horas são?”. Se o sujeito for capaz de se estender por 15 minutos sem dar a resposta, é promovido ao estágio seguinte. Em que consiste o estágio seguinte, ninguém revelou até agora, e se alguém o fizer, talvez seja prudente não lhe dar crédito. Mistificadores desse tipo praticaram sua arte sem maiores problemas até a chegada de Sócrates (469-399 a.C), que descobriu, ou redescobriu, algo que era kriptonita para os sofistas: a verdade. Sócrates administrava o veneno através do estratagema hoje conhecido como o método socrático, uma implacável bateria de perguntas destinada a solapar uma posição mediante o uso das próprias palavras do sofista e das coisas por ele admitidas.

Sócrates possuía a constituição perfeita para um cabo-de-guerra. Era um homem capaz de meditar de pés descalços na neve dias a fio, ou de, antes de entrar na casa de um amigo, ficar horas parado na soleira, ruminando em silêncio um problema filosófico. Homem vigoroso, distinguiu-se como soldado na juventude e era dotado de uma capacidade prodigiosa de ingerir álcool. Morreu aos setenta anos, deixando dois filhos pequenos – um, ao que parece, ainda de colo. Sócrates era também notório por sua feiúra. Um viajante tarimbado na leitura de fisionomias lhe disse certa vez que ele tinha as feições de um monstro capaz de qualquer crime, ao que o filósofo respondeu: “Acertou em cheio, senhor!” Outros foram mais caridosos. O jovem e impetuoso Alcibíades comparou Sócrates com uma estátua do medonho Sileno, que se abre para revelar belezas ocultas em seu interior. Ao que tudo indica, Alcibíades fez esse comentário à guisa de sedução, o que só mostra que os gregos eram bem menos suscetíveis que nós.


Quando sua aparência era tolerada, Sócrates sabia tirar partido dela. Já velho, pedia a seus opositores que levassem em conta sua idade e tornassem suas respostas breves o bastante para que ele não perdesse o fio da meada. De fato, não estava preocupado com sua própria concentração, mas com a dos espectadores reunidos. Para gozar o pleno benefício de seu pensamento, os homens precisavam aprender a ouvir. Precisavam prestar rigorosa atenção ao conteúdo de perguntas e respostas em vez de simplesmente se maravilhar com seu mérito estético. Frasear as próprias afirmações na forma de perguntas é uma tática de debate reconhecida pelos sofistas de hoje, mas não é em razão de suas habilidades retóricas que Sócrates é considerado o fundador da filosofia ocidental. O objetivo do método socrático não é meramente ganhar a discussão, mas descobrir a verdade absoluta da matéria. Podemos sempre aspirar à verdade, sustentava Sócrates, mesmo que isso envolva dar a mão à palmatória e perder a discussão. Sócrates não costumava perder discussões, mas em certas ocasiões reconheceu um empate. Embora isso envolvesse admitir sua ignorância no final de uma discussão tão enfaticamente quanto a professara no início, ele nunca deixava de ressalvar que seu opositor sofria do mesmo mal.

Para alguém que acabaria por subverter sozinho todo um establishment, Sócrates era curiosamente modesto. Diferentemente dos sofistas, não cobrava nada para ensinar e até se declarava incompetente para fazê-lo. Se os indagadores dos nossos tempos tendem a se negar a emitir suas opiniões pessoais enquanto zombam das dos outros, Sócrates declarava com toda franqueza sua própria posição – que era, ele afirmava, uma posição de ignorância. Foi porque admitia isso de bom grado que, num episódio célebre, o Oráculo de Delfos o declarou o homem mais sábio da Grécia. Se, como ele sustentava, a única coisa que sabia era que nada sabia, isso não o impedia de expor detalhadamente suas opiniões. Sua modéstia, não raro, é ironia, ao passo que seu louvor à sabedoria alheia em geral é sarcasmo. Num sentido mais profundo, contudo, sua modéstia revela verdadeira integridade. Tendo insistido que devemos “seguir a argumentação até onde ela leva”, faz sentido que considerasse também que não devemos nos apegar dogmaticamente a qualquer crença com que tenhamos começado a discussão. Isso significa estar pronto a aceitar críticas, bem como a fundamentar proposições. Afinal, é possível tratar injustamente até políticos.

Sem dúvida Sócrates tinha um programa e defendia um sistema filosófico complexo. Mas não acreditava que a verdade como tal fosse algo que lhe pertencesse – como uma tese original sua, que pudesse transmitir a seu bel-prazer. A verdade era, ao contrário, algo imanente ao mundo e aos homens, que ele era capaz de extrair mediante indagação ponderada. Assim, em vez de se autopromover (à maneira dos sofistas) como um grande repositório de sabedoria, Sócrates comparava-se a uma parteira – ele fazia parir a verdade. Na prática, tinha o costume de pedir a pessoas de notório saber que dessem suas definições de conceitos como justiça, coragem ou bem. Os primeiros estágios de uma discussão eram então meticulosamente armados, passo a passo, com o filósofo fazendo observações aparentemente inócuas e seu interlocutor entoando o mantra: “Sim, assim é, Sócrates”. Depois Sócrates passava a dar mais conteúdo às suas perguntas, até descobrir uma crença sustentada por seu opositor que, ao mesmo tempo em que era verdadeira, estava em contradição com a posição inicial dele. Mais perguntas se seguiam, até que se chegasse a um acordo quanto a uma definição aceitável. Em geral, a reação do opositor era maravilhar-se perante a sabedoria de Sócrates, e não melindrar-se com seus ardis verbais. Podemos atribuir isso não só às boas maneiras dos gregos como ao fato de Sócrates não ter deixado nenhuma obra escrita – seus pensamentos chegaram até nós por via dos diários de seu brilhante discípulo Platão.

Depois que o interlocutor se enredava, não havia volta, uma vez que Sócrates nunca permitia a seus opositores aceitar uma idéia provisoriamente ou defender argumentos em que não acreditavam. Segundo o próprio Sócrates, a razão disso era que seu método tinha um elemento moral. Ele estava interessado não no que os homens poderiam pensar, mas no que realmente pensavam. O objetivo da filosofia é aperfeiçoar as almas dos homens e não meramente refinar um cânone desencarnado de pensamento. De maneira mais prática, Sócrates queria evitar que seus opositores recitassem respostas prontas, aprendidas ipsi litteris com os chamados mestres. “Um livro”, ele dizia, “não pode responder a nenhuma pergunta”. As duas razões eram, na realidade, uma só, pois Sócrates queria que os homens pensassem por si mesmos (ainda que apenas porque esse é o único estado em que eles são maleáveis o bastante para se deixarem convencer por argumentos). Embora o método socrático busque descobrir como os seres humanos, como tais, deveriam viver, emprenha-se também em inculcar em indivíduos a maneira correta de conduzir suas vidas.

Toda pessoa racional questiona periodicamente suas metas e motivos e as crenças que os sustentam. O tipo de inquirição praticado por Sócrates voltava-se para os tipos mais gerais de verdade, o “quadro geral” por assim dizer. Na vida cotidiana, porém, o questionamento das bases de toda a nossa visão de mundo não tende a fornecer conselhos práticos. Chegar a uma concepção do que somos e de para onde deveríamos caminhar é um processo gradativo, e toda mudança em nossas vidas é feita com base no que se passou antes. Assim, por exemplo, se peço um conselho a um amigo sobre como me apresentar numa entrevista para pleitear um emprego, quero que ele me diga para comprar uma gravata nova ou fazer um bom corte de cabelo. Não quero ouvir que deveria renovar todo o meu guarda-roupa ou pensar numa carreira diferente. Por outro lado, segundo o raciocínio subjacente ao método socrático, uma visão verdadeiramente precisa do mundo é aquela que não abriga as incoerências que a indagação de Sócrates traz à luz. Quando encontramos um ponto de vista perfeitamente coerente, encontramos a verdade. Talvez hoje já não acreditemos que só pode haver uma única visão de mundo “correta”, e a maioria de nós admite que certo grau de incoerência nas crenças de alguém é menos um sinal de ignorância que um reflexo de um mundo em que verdades absolutas não podem ser garantidas. No entanto, se vou ser entrevistado para um emprego numa companhia de seguros conservadora e meu estilo pessoal favorecer cabelos pelos ombros e piercing no rosto, a coerência exige que eu altere minha aparência radicalmente ou procure emprego em outro lugar. Esperar sucesso de outro modo é no mínimo dar mostra de uma visão um tanto desequilibrada do mundo.

O desejo dos Atenienses de se aperfeiçoar acabou se esgotando, junto com sua paciência. Consistindo, de fato, na humilhação pública dos grandes e dos bons, a investigação de Sócrates foi muito corretamente identificada como uma ameaça às bases da sociedade grega. Ela demonstrara que nobres como Crítis e Carmides não sabiam o que era temperança ou moderação. Revelara que os briosos generais Laquete e Nícias ignoravam o significado de coragem. Por fim, Sócrates denegria o princípio essencial de democracia ateniense ao afirmar que as decisões não deviam ser tomadas pelo voto, mas por reis-filósofos, com base em sua sabedoria superior. Somente por esse meio, ele sustentava, poderíamos evitar as iniqüidades do governo do populacho e dos líderes que exploravam as piores paixões de seu eleitorado. Em outro sentido, menos louvável, a postura de Sócrates lembrava aquela adotada por comunistas americanos e europeus durante a Guerra Fria. Ao condenar o modelo ocidental de democracia, criticavam o próprio sistema que lhes permitia fazer esses protestos. Deixando o macarthismo de lado, as autoridades de Atenas não eram tão complacentes como as nossas. Sócrates foi acusado de corromper os jovens e condenado à morte por envenenamento. Enquanto a cicuta fazia efeito em seu organismo, seus amigos se reuniram à volta do filósofo para ouvir suas últimas palavras de sabedoria. “Estamos devendo um galo a Esculápio”, ele resmungou, “não se esqueçam de pagar a dívida”.

Não deixe de ler A CAVERNA DE PLATÃO que será postado em breve