O POÇO DE TALES - O Mundo Numa Gota d’Água
No verão de 1999, a Universidade de Cornell publicou uma pesquisa dando a entender que o amor é, na verdade, uma droga. Para ser preciso, o que produz a sensação que chamamos “paixão” é um coquetel de dopamina, feniletilamina e oxitocina na corrente sanguínea. O amor, afirmaram os pesquisadores, é na verdade uma forma de loucura quimicamente induzida. Esse estado perdura até que o corpo desenvolva imunidade às substâncias envolvidas, o que demora exatamente o tempo necessário para que um casal namore, case e crie um filho até a primeira infância. A teoria parece suspeita, se não francamente ofensiva. O amor, nós sentimos, é uma das coisas mais importantes pode acontecer a uma pessoa e deveria ser posto num pedestal, não numa seringa injetável nos que dele são carentes. As conclusões da Universidade de Cornell basearam-se no princípio do “reducionismo”: a idéia de que é possível compreender as coisas reduzindo-as às suas partes componentes, ou de que processos complexos, de grande escala, podem ser compreendidos em termos de processos mais simples. A pesquisa poderá ser invalidada mais cedo ou mais tarde, mas, se sobreviver, não será o primeiro caso em que o pensamento reducionista vem dissipar nossas ilusões.
Outro exemplo de reducionismo é a crença de que a amidalite é causada por certo tipo de bactéria que invade o corpo, e que a melhor maneira de trata-la é atacar o germe diretamente mediante a administração de antibióticos. Uma tática alternativa – embora não aconselhada por muitos médicos do Ocidente – seria encarar essa doença como uma enfermidade do corpo todo, causada, talvez, por um “desequilíbrio” no sistema total do indivíduo. Essa abordagem “holística” irá sugerir vários tratamentos, que podem ou não ser eficazes. Nos casos de doenças muito genéricas, uma visão holística da situação pode ser a mais sensata, ou pelo menos um complemento importante para a abordagem reducionista. Doenças cardíacas brandas, por exemplo, são por vezes tratadas não com remédios, mas sugerindo-se ao paciente que abandone o cigarro, reduza o colesterol e pratique exercícios físicos regulares. Até esse conselho, porém, é produto de investigações reducionistas da química e da fisiologia do organismo.
Apesar dos avanços científicos que nos propiciou, o reducionismo é uma espécie de palavrão hoje em dia. Há quem pense que, ao tentar compreender o universo, nós o maculamos. Inspecionamos com microscópios invasivos e disseminamos em línguas humanas bárbaras aquilo que só pôde ser criado mediante a graça divina de Deus. Armado das novas ciências genéticas, um botânico pode pretender ter decodificado a essência de uma rosa no genoma da planta. Não seria levado muito a sério por poetas como William Blake, autor da célebre crítica de que a ciência “assassina para dissecar”; ou pelo esteta do século XIX Walter Pater, que escreveu que o jardim do cientista teria “rótulos nos ramos em vez de flores”. Mesmo que nem todos tenhamos tamanha aversão ao reducionismo, muitos de nós sentimos instintivamente que ele deve envolver simplificações grosseiras, ou que opera para “rebaixar a natureza ao nosso nível”. Mas nosso nível é o único que temos, e não há necessariamente nada de errado com ele. O físico americano Richard Feynman opinou que não deveríamos ser excessivamente modestos acerca de nossas faculdades, observando que ele, como cientista, era capaz não só de apreciar a beleza estética de uma flor, como de se maravilhar perante suas intricadas estruturas bioquímicas. Ao mesmo tempo, no entanto, fomos vítimas das extravagâncias de Freud e Marx, que reduziram excessivamente a experiência humana a sexo e economia, respectivamente. A redução é uma ferramenta que pode ser mal empregada, mas devemos lembrar que ela nos proporcionou a viagem espacial e o Projeto Genoma Humano.
O primeiro filósofo reducionista – e também o primeiro filósofo ocidental que se tem notícia – foi Tales, um grego nascido por volta de 636 a.C. em Mileto na Ásia Menor (hoje a Turquia). Tales foi um dos “sete sábios” – os homens dos séculos VI e VII a.C. que alcançaram renome por sua sabedoria como governantes, legisladores e conselheiros. Eles tiveram suas máximas inscritas nas paredes do templo de Apolo em Delfos. Por todo o mundo antigo, reproduziram-se mosaicos representando suas cabeças barbadas, idosas, ao lado de frases como “Conhece-te a ti mesmo” e “Nada em excesso”. Tales viajou por terras tão distantes quanto o Egito e a Babilônia para recolher conhecimentos de outras culturas. Quando voltou para sua pátria e ofereceu sua própria contribuição ao conhecimento, os gregos o aclamaram como fundador da ciência, da matemática e da filosofia. Parte de sua fama proveio de uma lenda contada 150 anos depois pelo historiador Heródoto. Usando a astronomia que aprendera no Oriente (ou, segundo outras autoridades, por puro palpite), Tales conseguiu prever que haveria um eclipse do Sol em 585 a.C. No dia previsto, os exércitos da Média e da Lídia estavam marchando para se enfrentar em batalha. Interpretaram o eclipse como uma advertência dos deuses e rapidamente interromperam as hostilidades para assinar um tratado de paz. Astrônomos modernos mostraram que o eclipse deve ter ocorrido em 28 de maio daquele ano. Isso significa que a batalha que não ocorreu é o único evento no mundo antigo que podemos datar com precisão.
Segundo uma história contada por Platão (428-347a.C.), em uma bela noite Tales estava andando a esmo, estudando as estrelas, quando caiu dentro de um poço. Uma bonita escrava trácia ouviu os gritos do filósofo e ajudou-o a sair dali, mas não sem comentar, gracejando, que Tales era um homem “que estuda as estrelas mas não consegue ver o chão sob seus pés”. Isso parece injusto, pois nem sempre Tales tinha a cabeça nas nuvens. Vários casos atestam suas habilidades práticas. Ele defendeu o estabelecimento de uma união política entre as cidades-Estado gregas da Jônia como a única maneira de frustrar as intenções expansionistas de sua rival, a Lídia. Embora ignorado pelas autoridades, seu conselho verificou-se extremamente apropriado nos séculos seguintes. Aristóteles (384-322a.C.) conta que Tales era criticado por sua pobreza, tomada como uma prova de que a filosofia não era útil a ninguém. Em resposta, o filósofo usou seus talentos para prever que a colheita de azeitonas na estação seguinte seria excelente. Em seguida, tratou de comprar todos os lagares de azeitonas de Mileto (presumivelmente tomando um empréstimo) e ganha uma fortuna quando a safra correspondeu às suas expectativas. Tales morreu aos 78 anos, de insolação, quando assistia a uma competição atlética. A inscrição em seu túmulo dizia: “Aqui jaz, num pequeno túmulo, o grande Tales: sua reputação de sabedoria, no entanto, chegou ao céu”.
Não há indícios de que Tales tenha escrito livro algum; consta, porém, que declarou que ficaria satisfeito se aqueles que passassem suas idéias adiante as atribuíssem a ele, não a si mesmos. Dada sua crença de que o universo era feito de água, a maioria de nós acataria seu desejo de bom grado. A água, Tales afirmava, era a substância fundamental de que todas as outras se compunham. A matéria era água condensada e o ar, água evaporada. Toda a Terra, ele sustentava, era um disco que flutuava num lago gigantesco, cujas ondas e encrespações eram a causa dos terremotos. Segundo Aristóteles, Tales teve o primeiro vislumbre disso ao observar que a água era essencial a todas as formas de vida no mundo natural. A teoria de Tales parece bastante plausível quando consideramos que a água se apresenta nas formas sólida, líquida e gasosa. Embora equivocada, a idéia foi a primeira hipótese científica de que se tem registro.
Tales estava operando uma grande redução. As propriedades de todos os objetos do mundo, sejam eles metais, montanhas, gases ou pessoas, eram a seu ver, redutíveis a um único conjunto de propriedades – as da água. Assim, se pulverizássemos bem as coisas, a dissecássemos ou as examinássemos de muito perto, encontraríamos não ferro, pedra ou carne, mas água. Pode parecer estranho que se queira explicar uma coisa em termos de outra em vez de trata-la em seus próprios termos, mas é assim que a redução procede. Se desejamos compreender o mundo, isso significa que devemos pôr as coisas em termos que possamos entender. Reduzir uma coisa é como traduzi-la para uma língua mais inteligível. Depois da redução, um fenômeno torna-se mais facilmente manejável e menos misterioso porque é mais simples compreender componentes que um sistema inteiro.
Porém, se o único objetivo da redução fosse a simplificação, muitas das que são feitas em nosso tempo moderno seriam fracassos. Até onde sabemos, Tales não entrou em muitos detalhes sobre o modo preciso como a água forma os vários fenômenos do mundo natural, mas pelo menos a água é uma substância com a qual estamos bem familiarizados. A matemática da teoria atômica moderna, por outro lado, só é compreensível a um punhado de pessoas com formação apropriada. A redução torna as coisas mais inteligíveis, mas não necessariamente para todos. A compreensão comum das massas é com tanta freqüência substituída pelo melhor entendimento de uns poucos que o reducionismo desperta fatalmente algum grau de desconfiança. Acresce que, em se tratando de explicações, o “mais simples” significa muitas vezes algo rudemente físico, e, assim, ser reducionista é muitas vezes o mesmo que ser materialista. Os reducionistas são atrapalhados também por uma escolha infeliz de termos. Tudo que a redução verdadeiramente “reduz” é a complexidade de uma explicação. Todo o resto que há para ser explicado com relação ao fenômeno continua existindo. Mas isso só ocorre na medida em que há um fenômeno real a reduzir. Os reducionistas descartam de bom grado coisas como almas e deuses, em que não poderiam acreditar. Embora explicações mais simples sejam consideradas “inferiores” por estarem mais próximas dos fatos mais básicos que conhecemos, poderíamos igualmente chama-las “superiores” porque se elevam acima de detalhes irrelevantes e ofuscantes para chegar à verdade essencial das coisas. Assim, a hierarquia do conhecimento e da compreensão que o reducionismo fornece poderia ser vista como uma pirâmide comum, não uma pirâmide invertida.
Como a redução se aproxima da simplificação, há sempre o risco da supersimplificação. Vale a pena, portanto, estar atento ao que exatamente está sendo reduzido e a que poderes explanatórios, exatamente, a redução possui. É preciso perguntar se, ao reduzir alguma coisa, não estamos simplesmente descartando-a de nossa descrição do mundo. Seria possível reduzir o sabor dos damascos, por exemplo, à interação das moléculas da fruta com os receptores em nosso palato. Mas será que isso não desconsidera o sabor que os damascos realmente têm? Afinal, um indivíduo poderia saber quais são os constituintes químicos dos damascos sem jamais os ter comido. Apesar disso, a eliminação pode não ser de todo má. O entendimento humano avança por dois meios: a reunião de fatos para a descoberta de novos fenômenos e a união desses fenômenos sob a influência simplificadora de explicações redutivas. Por vezes constatamos que, assim que os dados disponíveis foram adequadamente reduzidos, surgem novos dados que lançam dúvida sobre a redução e exigem que reconsideremos o fenômeno em sua totalidade.
É paradoxal que, para compreender processos naturais corriqueiros, como a evaporação da água quando fervida, precisemos consultar níveis “inferiores” de organização e entidades desconhecidas como prótons e elétrons. Seria estranho sugerir que os níveis “mais elevados” de organização com os quais estamos acostumados a lidar – como o das nuvens, xícaras de café e lágrimas humanas – são de fato ilusórios. Mas às vezes os reducionistas científicos chegam perigosamente perto de afirmar isso ao dizerem que não somos “nada mais que amontoados de átomos”. As palavras-chaves são “nada mais que”. Isso é correto se o dizemos no mesmo sentido em que afirmamos que um romance não é “nada mais que” um amontoado de marcas de tinta sobre papel, ou que um cérebro não é “nada mais que” um aglomerado de neurônios. Se os seres humanos não passam de amontoados de átomos, isso diz menos sobre a origem difusa da humanidade que sobre o espantoso potencial que átomos aparentemente inofensivos sob outros aspectos possuem.
Há um sentido, entretanto, em que um reducionista poderia afirmar que só os níveis mais básicos de descrição denotam o que é verdadeiramente real. A natureza parece tomar a maior parte de suas decisões fundamentais no nível microscópico. Como observou o filósofo americano Jerry Fodor (1935-), não há uma ciência das terças-feiras. A ciência só reconhece quatro forças: gravidade, eletromagnetismo e as forças nucleares forte e fraca, que mantêm os núcleos atômicos coesos. Foi demonstrado que a força nuclear fraca é uma forma da força eletromagnética, e espera-se descobrir num futuro não muito distante, que todas elas são aspectos de uma única força unificadora. Segundo reducionistas científicos empedernidos, tudo que acontece, acontece por causa delas e de mais nada (especialmente, não por causa de conceitos etéreos como intenções humanas). Elas operam sobre objetos macroscópicos como carros porque atuam sobe os átomos de que estes são compostos. Explicar todos os processos naturais em termos da operação das quatro forças é sugerir que as únicas explicações adequadas são as que se referem a eventos microscópicos. Poderíamos dizer, por exemplo, que um período de calor causou a quebra das safras. Uma explicação verdadeiramente precisa, no entanto, falaria da maior agitação das moléculas do ar e não de meras metáforas, como o “calor”. Se alguém me pergunta como cheguei a uma festa e respondo que fui dirigindo, eu não aceitaria ser corrigido sob a alegação de que, de fato, pressionei um pedal e refinei gasolina queimada para gerar propulsão. Ficaria ainda mais confuso se meu interlocutor passasse imediatamente a falar sobre reações químicas e compostos de carbono. Quanto mais drástica for a redução, maior será a necessidade de mostrar de que maneira ela se liga aos nossos conceitos usuais – caso contrário, podemos não acreditar que o reducionista esteja falando da mesma coisa que nós. Algo em nossa experiência comum, seja a ação de dirigir até uma festa ou o sabor dos damascos nos canapés, precisa ser preservado em uma redução para que ela valha como explicação. De outro modo, temos a impressão de estar ouvindo apenas uma fala sobre um tópico irrelevante e não uma resposta a uma pergunta sobre o meio de transporte usado para se chegar a uma festa. Por outro lado, a explicação do reducionista poderia ser mais bem-vinda se meu carro tivesse enguiçado no caminho por eu ter enchido o tanque com o tipo errado de gasolina.
As quatro forças da natureza podem servir de base a tudo, do movimento das nuvens a uma receita de lasanha, mas a compreensão que um físico tem dessas forças, por si só, não nos permitiria prever o tempo como um meteorologista ou fazer massa como um chef italiano de primeira. (É possível que, no futuro, venham a existir chefs robôs com um conhecimento completo das forcas fundamentais aliado a uma capacidade super-humana de utilizá-lo. Talvez fosse possível para tal criatura preparar o prato perfeito mediante força bruta ou cálculos complexos, mas isso continuaria sendo uma maneira desnecessariamente enfadonha de satisfazer um prazer simples da vida.) Por outro lado, cozinhar bem ou fazer uma previsão meteorológica precisa são habilidades muito distantes de uma compreensão fundamental do universo. Para esta última empreitada, o pensamento reducionista é claramente necessário. Isso não significa que o reducionismo seja útil apenas para explicar a física subatômica da vida. Em geral, podemos compreender melhor uma coisa reduzindo-a e atentando para o nível de explicação que lhe é imediatamente inferior. Por exemplo, podemos preparar melhor uma lasanha se entendemos as medidas corretas de farinha e molho de tomate da sua receita. Para compreender a farinha, por sua vez, precisaríamos compreender o nível abaixo desse – isto é, a consistência dos vários grãos usados em sua produção, de modo a podermos escolher exclusivamente o melhor grão duro para nossos ingredientes. Seria possível continuar descendo pelos níveis de explicação até chegar aos átomos e às moléculas. Mas é provável que, na hora de decidir a quantidade ideal de hidrogênio a usar, já teríamos morrido de fome. Em geral, o que mais auxilia na compreensão de um fenômeno é o nível imediatamente abaixo dele, não níveis de descrição cada vez mais básicos e abstrusos. O que há de excelente nas explicações redutivas é que elas nos permitem refazer o caminho de baixo para cima, como um capitão do navio que desce à sala de máquinas e volta à ponte de comando mais bem informado sobre a potência de sua embarcação. Descemos a níveis mais básicos de descrição para pôr em foco aquilo que fará toda a diferença em níveis mais elevados.
Apesar dos usos práticos do reducionismo, sua aplicação à vida cotidiana apresenta-se frequentemente sob a forma do cinismo. É reducionista, por exemplo, dizer que embora fulano dê dinheiro para fins de caridade e dedique seu tempo livre a trabalho voluntário, está servindo “apenas” a seus interesses pessoais. É igualmente reducionista declarar que, ainda que uma empresa fomente projetos destinado a melhorar o meio-ambiente e proteger seus empregados, ela está em última análise preocupada “somente” com seus lucros a longo prazo. Isto posto, não seria menos reducionista afirmar que a empresa está sendo movida exclusivamente por bondade cristã. Para uma explicação ser qualificada como reducionista, basta que explique uma coisa em termos de uma outra singular. O reducionismo soa bastante inocente quando assim definido, mas nada dotado de tamanho poder explanatório JAMAIS SERÁ INOFENSIVO.
Outro exemplo de reducionismo é a crença de que a amidalite é causada por certo tipo de bactéria que invade o corpo, e que a melhor maneira de trata-la é atacar o germe diretamente mediante a administração de antibióticos. Uma tática alternativa – embora não aconselhada por muitos médicos do Ocidente – seria encarar essa doença como uma enfermidade do corpo todo, causada, talvez, por um “desequilíbrio” no sistema total do indivíduo. Essa abordagem “holística” irá sugerir vários tratamentos, que podem ou não ser eficazes. Nos casos de doenças muito genéricas, uma visão holística da situação pode ser a mais sensata, ou pelo menos um complemento importante para a abordagem reducionista. Doenças cardíacas brandas, por exemplo, são por vezes tratadas não com remédios, mas sugerindo-se ao paciente que abandone o cigarro, reduza o colesterol e pratique exercícios físicos regulares. Até esse conselho, porém, é produto de investigações reducionistas da química e da fisiologia do organismo.
Apesar dos avanços científicos que nos propiciou, o reducionismo é uma espécie de palavrão hoje em dia. Há quem pense que, ao tentar compreender o universo, nós o maculamos. Inspecionamos com microscópios invasivos e disseminamos em línguas humanas bárbaras aquilo que só pôde ser criado mediante a graça divina de Deus. Armado das novas ciências genéticas, um botânico pode pretender ter decodificado a essência de uma rosa no genoma da planta. Não seria levado muito a sério por poetas como William Blake, autor da célebre crítica de que a ciência “assassina para dissecar”; ou pelo esteta do século XIX Walter Pater, que escreveu que o jardim do cientista teria “rótulos nos ramos em vez de flores”. Mesmo que nem todos tenhamos tamanha aversão ao reducionismo, muitos de nós sentimos instintivamente que ele deve envolver simplificações grosseiras, ou que opera para “rebaixar a natureza ao nosso nível”. Mas nosso nível é o único que temos, e não há necessariamente nada de errado com ele. O físico americano Richard Feynman opinou que não deveríamos ser excessivamente modestos acerca de nossas faculdades, observando que ele, como cientista, era capaz não só de apreciar a beleza estética de uma flor, como de se maravilhar perante suas intricadas estruturas bioquímicas. Ao mesmo tempo, no entanto, fomos vítimas das extravagâncias de Freud e Marx, que reduziram excessivamente a experiência humana a sexo e economia, respectivamente. A redução é uma ferramenta que pode ser mal empregada, mas devemos lembrar que ela nos proporcionou a viagem espacial e o Projeto Genoma Humano.
O primeiro filósofo reducionista – e também o primeiro filósofo ocidental que se tem notícia – foi Tales, um grego nascido por volta de 636 a.C. em Mileto na Ásia Menor (hoje a Turquia). Tales foi um dos “sete sábios” – os homens dos séculos VI e VII a.C. que alcançaram renome por sua sabedoria como governantes, legisladores e conselheiros. Eles tiveram suas máximas inscritas nas paredes do templo de Apolo em Delfos. Por todo o mundo antigo, reproduziram-se mosaicos representando suas cabeças barbadas, idosas, ao lado de frases como “Conhece-te a ti mesmo” e “Nada em excesso”. Tales viajou por terras tão distantes quanto o Egito e a Babilônia para recolher conhecimentos de outras culturas. Quando voltou para sua pátria e ofereceu sua própria contribuição ao conhecimento, os gregos o aclamaram como fundador da ciência, da matemática e da filosofia. Parte de sua fama proveio de uma lenda contada 150 anos depois pelo historiador Heródoto. Usando a astronomia que aprendera no Oriente (ou, segundo outras autoridades, por puro palpite), Tales conseguiu prever que haveria um eclipse do Sol em 585 a.C. No dia previsto, os exércitos da Média e da Lídia estavam marchando para se enfrentar em batalha. Interpretaram o eclipse como uma advertência dos deuses e rapidamente interromperam as hostilidades para assinar um tratado de paz. Astrônomos modernos mostraram que o eclipse deve ter ocorrido em 28 de maio daquele ano. Isso significa que a batalha que não ocorreu é o único evento no mundo antigo que podemos datar com precisão.
Segundo uma história contada por Platão (428-347a.C.), em uma bela noite Tales estava andando a esmo, estudando as estrelas, quando caiu dentro de um poço. Uma bonita escrava trácia ouviu os gritos do filósofo e ajudou-o a sair dali, mas não sem comentar, gracejando, que Tales era um homem “que estuda as estrelas mas não consegue ver o chão sob seus pés”. Isso parece injusto, pois nem sempre Tales tinha a cabeça nas nuvens. Vários casos atestam suas habilidades práticas. Ele defendeu o estabelecimento de uma união política entre as cidades-Estado gregas da Jônia como a única maneira de frustrar as intenções expansionistas de sua rival, a Lídia. Embora ignorado pelas autoridades, seu conselho verificou-se extremamente apropriado nos séculos seguintes. Aristóteles (384-322a.C.) conta que Tales era criticado por sua pobreza, tomada como uma prova de que a filosofia não era útil a ninguém. Em resposta, o filósofo usou seus talentos para prever que a colheita de azeitonas na estação seguinte seria excelente. Em seguida, tratou de comprar todos os lagares de azeitonas de Mileto (presumivelmente tomando um empréstimo) e ganha uma fortuna quando a safra correspondeu às suas expectativas. Tales morreu aos 78 anos, de insolação, quando assistia a uma competição atlética. A inscrição em seu túmulo dizia: “Aqui jaz, num pequeno túmulo, o grande Tales: sua reputação de sabedoria, no entanto, chegou ao céu”.
Não há indícios de que Tales tenha escrito livro algum; consta, porém, que declarou que ficaria satisfeito se aqueles que passassem suas idéias adiante as atribuíssem a ele, não a si mesmos. Dada sua crença de que o universo era feito de água, a maioria de nós acataria seu desejo de bom grado. A água, Tales afirmava, era a substância fundamental de que todas as outras se compunham. A matéria era água condensada e o ar, água evaporada. Toda a Terra, ele sustentava, era um disco que flutuava num lago gigantesco, cujas ondas e encrespações eram a causa dos terremotos. Segundo Aristóteles, Tales teve o primeiro vislumbre disso ao observar que a água era essencial a todas as formas de vida no mundo natural. A teoria de Tales parece bastante plausível quando consideramos que a água se apresenta nas formas sólida, líquida e gasosa. Embora equivocada, a idéia foi a primeira hipótese científica de que se tem registro.
Tales estava operando uma grande redução. As propriedades de todos os objetos do mundo, sejam eles metais, montanhas, gases ou pessoas, eram a seu ver, redutíveis a um único conjunto de propriedades – as da água. Assim, se pulverizássemos bem as coisas, a dissecássemos ou as examinássemos de muito perto, encontraríamos não ferro, pedra ou carne, mas água. Pode parecer estranho que se queira explicar uma coisa em termos de outra em vez de trata-la em seus próprios termos, mas é assim que a redução procede. Se desejamos compreender o mundo, isso significa que devemos pôr as coisas em termos que possamos entender. Reduzir uma coisa é como traduzi-la para uma língua mais inteligível. Depois da redução, um fenômeno torna-se mais facilmente manejável e menos misterioso porque é mais simples compreender componentes que um sistema inteiro.
Porém, se o único objetivo da redução fosse a simplificação, muitas das que são feitas em nosso tempo moderno seriam fracassos. Até onde sabemos, Tales não entrou em muitos detalhes sobre o modo preciso como a água forma os vários fenômenos do mundo natural, mas pelo menos a água é uma substância com a qual estamos bem familiarizados. A matemática da teoria atômica moderna, por outro lado, só é compreensível a um punhado de pessoas com formação apropriada. A redução torna as coisas mais inteligíveis, mas não necessariamente para todos. A compreensão comum das massas é com tanta freqüência substituída pelo melhor entendimento de uns poucos que o reducionismo desperta fatalmente algum grau de desconfiança. Acresce que, em se tratando de explicações, o “mais simples” significa muitas vezes algo rudemente físico, e, assim, ser reducionista é muitas vezes o mesmo que ser materialista. Os reducionistas são atrapalhados também por uma escolha infeliz de termos. Tudo que a redução verdadeiramente “reduz” é a complexidade de uma explicação. Todo o resto que há para ser explicado com relação ao fenômeno continua existindo. Mas isso só ocorre na medida em que há um fenômeno real a reduzir. Os reducionistas descartam de bom grado coisas como almas e deuses, em que não poderiam acreditar. Embora explicações mais simples sejam consideradas “inferiores” por estarem mais próximas dos fatos mais básicos que conhecemos, poderíamos igualmente chama-las “superiores” porque se elevam acima de detalhes irrelevantes e ofuscantes para chegar à verdade essencial das coisas. Assim, a hierarquia do conhecimento e da compreensão que o reducionismo fornece poderia ser vista como uma pirâmide comum, não uma pirâmide invertida.
Como a redução se aproxima da simplificação, há sempre o risco da supersimplificação. Vale a pena, portanto, estar atento ao que exatamente está sendo reduzido e a que poderes explanatórios, exatamente, a redução possui. É preciso perguntar se, ao reduzir alguma coisa, não estamos simplesmente descartando-a de nossa descrição do mundo. Seria possível reduzir o sabor dos damascos, por exemplo, à interação das moléculas da fruta com os receptores em nosso palato. Mas será que isso não desconsidera o sabor que os damascos realmente têm? Afinal, um indivíduo poderia saber quais são os constituintes químicos dos damascos sem jamais os ter comido. Apesar disso, a eliminação pode não ser de todo má. O entendimento humano avança por dois meios: a reunião de fatos para a descoberta de novos fenômenos e a união desses fenômenos sob a influência simplificadora de explicações redutivas. Por vezes constatamos que, assim que os dados disponíveis foram adequadamente reduzidos, surgem novos dados que lançam dúvida sobre a redução e exigem que reconsideremos o fenômeno em sua totalidade.
É paradoxal que, para compreender processos naturais corriqueiros, como a evaporação da água quando fervida, precisemos consultar níveis “inferiores” de organização e entidades desconhecidas como prótons e elétrons. Seria estranho sugerir que os níveis “mais elevados” de organização com os quais estamos acostumados a lidar – como o das nuvens, xícaras de café e lágrimas humanas – são de fato ilusórios. Mas às vezes os reducionistas científicos chegam perigosamente perto de afirmar isso ao dizerem que não somos “nada mais que amontoados de átomos”. As palavras-chaves são “nada mais que”. Isso é correto se o dizemos no mesmo sentido em que afirmamos que um romance não é “nada mais que” um amontoado de marcas de tinta sobre papel, ou que um cérebro não é “nada mais que” um aglomerado de neurônios. Se os seres humanos não passam de amontoados de átomos, isso diz menos sobre a origem difusa da humanidade que sobre o espantoso potencial que átomos aparentemente inofensivos sob outros aspectos possuem.
Há um sentido, entretanto, em que um reducionista poderia afirmar que só os níveis mais básicos de descrição denotam o que é verdadeiramente real. A natureza parece tomar a maior parte de suas decisões fundamentais no nível microscópico. Como observou o filósofo americano Jerry Fodor (1935-), não há uma ciência das terças-feiras. A ciência só reconhece quatro forças: gravidade, eletromagnetismo e as forças nucleares forte e fraca, que mantêm os núcleos atômicos coesos. Foi demonstrado que a força nuclear fraca é uma forma da força eletromagnética, e espera-se descobrir num futuro não muito distante, que todas elas são aspectos de uma única força unificadora. Segundo reducionistas científicos empedernidos, tudo que acontece, acontece por causa delas e de mais nada (especialmente, não por causa de conceitos etéreos como intenções humanas). Elas operam sobre objetos macroscópicos como carros porque atuam sobe os átomos de que estes são compostos. Explicar todos os processos naturais em termos da operação das quatro forças é sugerir que as únicas explicações adequadas são as que se referem a eventos microscópicos. Poderíamos dizer, por exemplo, que um período de calor causou a quebra das safras. Uma explicação verdadeiramente precisa, no entanto, falaria da maior agitação das moléculas do ar e não de meras metáforas, como o “calor”. Se alguém me pergunta como cheguei a uma festa e respondo que fui dirigindo, eu não aceitaria ser corrigido sob a alegação de que, de fato, pressionei um pedal e refinei gasolina queimada para gerar propulsão. Ficaria ainda mais confuso se meu interlocutor passasse imediatamente a falar sobre reações químicas e compostos de carbono. Quanto mais drástica for a redução, maior será a necessidade de mostrar de que maneira ela se liga aos nossos conceitos usuais – caso contrário, podemos não acreditar que o reducionista esteja falando da mesma coisa que nós. Algo em nossa experiência comum, seja a ação de dirigir até uma festa ou o sabor dos damascos nos canapés, precisa ser preservado em uma redução para que ela valha como explicação. De outro modo, temos a impressão de estar ouvindo apenas uma fala sobre um tópico irrelevante e não uma resposta a uma pergunta sobre o meio de transporte usado para se chegar a uma festa. Por outro lado, a explicação do reducionista poderia ser mais bem-vinda se meu carro tivesse enguiçado no caminho por eu ter enchido o tanque com o tipo errado de gasolina.
As quatro forças da natureza podem servir de base a tudo, do movimento das nuvens a uma receita de lasanha, mas a compreensão que um físico tem dessas forças, por si só, não nos permitiria prever o tempo como um meteorologista ou fazer massa como um chef italiano de primeira. (É possível que, no futuro, venham a existir chefs robôs com um conhecimento completo das forcas fundamentais aliado a uma capacidade super-humana de utilizá-lo. Talvez fosse possível para tal criatura preparar o prato perfeito mediante força bruta ou cálculos complexos, mas isso continuaria sendo uma maneira desnecessariamente enfadonha de satisfazer um prazer simples da vida.) Por outro lado, cozinhar bem ou fazer uma previsão meteorológica precisa são habilidades muito distantes de uma compreensão fundamental do universo. Para esta última empreitada, o pensamento reducionista é claramente necessário. Isso não significa que o reducionismo seja útil apenas para explicar a física subatômica da vida. Em geral, podemos compreender melhor uma coisa reduzindo-a e atentando para o nível de explicação que lhe é imediatamente inferior. Por exemplo, podemos preparar melhor uma lasanha se entendemos as medidas corretas de farinha e molho de tomate da sua receita. Para compreender a farinha, por sua vez, precisaríamos compreender o nível abaixo desse – isto é, a consistência dos vários grãos usados em sua produção, de modo a podermos escolher exclusivamente o melhor grão duro para nossos ingredientes. Seria possível continuar descendo pelos níveis de explicação até chegar aos átomos e às moléculas. Mas é provável que, na hora de decidir a quantidade ideal de hidrogênio a usar, já teríamos morrido de fome. Em geral, o que mais auxilia na compreensão de um fenômeno é o nível imediatamente abaixo dele, não níveis de descrição cada vez mais básicos e abstrusos. O que há de excelente nas explicações redutivas é que elas nos permitem refazer o caminho de baixo para cima, como um capitão do navio que desce à sala de máquinas e volta à ponte de comando mais bem informado sobre a potência de sua embarcação. Descemos a níveis mais básicos de descrição para pôr em foco aquilo que fará toda a diferença em níveis mais elevados.
Apesar dos usos práticos do reducionismo, sua aplicação à vida cotidiana apresenta-se frequentemente sob a forma do cinismo. É reducionista, por exemplo, dizer que embora fulano dê dinheiro para fins de caridade e dedique seu tempo livre a trabalho voluntário, está servindo “apenas” a seus interesses pessoais. É igualmente reducionista declarar que, ainda que uma empresa fomente projetos destinado a melhorar o meio-ambiente e proteger seus empregados, ela está em última análise preocupada “somente” com seus lucros a longo prazo. Isto posto, não seria menos reducionista afirmar que a empresa está sendo movida exclusivamente por bondade cristã. Para uma explicação ser qualificada como reducionista, basta que explique uma coisa em termos de uma outra singular. O reducionismo soa bastante inocente quando assim definido, mas nada dotado de tamanho poder explanatório JAMAIS SERÁ INOFENSIVO.
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