ZENÃO E A TARTARUGA - O uso da "reductio ad absurdum"
É corrente, nos bares mais refinados, a desconfiança de que a homofobia, longe de denotar uma heterossexualidade vigorosa, camufla na verdade uma incapacidade de lidar com os próprios sentimentos homossexuais reprimidos. Mas se o ódio aos outros brota do ódio a si mesmo, deveríamos esperar, pela mesma lógica, que os membros da Ku Klux Klan, por exemplo, tivessem um aspecto afro-americano reprimido em suas personalidades. Essa maneira de expor um argumento ao ridículo é conhecida como reductio ad absurdum, o que significa literalmente “redução ao absurdo”. Usamos esse artifício sempre que, em vez de demonstrar que uma posição não é verdadeira, examinamos as conseqüências que ela teria se fosse correta e mostramos que elas são inaceitáveis. Na vida comum, é sem dúvida mais fácil zombar das posições dos outros que elaborar a própria. Na filosofia não é diferente. Enquanto somos obrigados a esperar a passagem do tempo para revelar o absurdo de uma política de governo ou de um casamento precipitado, na discussão lógica o processo costuma ser mais rápido.
O primeiro filósofo a empregar a reductio ad absurdum foi Zenão, que (segundo Platão) era um grego alto e encantador nascido por volta de 490a.C. em Eléia – hoje uma cidade no sul da Itália. Zenão era discípulo do filósofo Parmênides, que ensinava que todas as múltiplas e variadas coisas existentes são de fato uma única e perene realidade a que chamava “ser”. Afirmava que a negação do ser, a despeito de quaisquer mudanças imagináveis que pudesse sofrer, é de fato impossível. Apenas umas duzentas palavras dos escritos de Zenão chegaram até nós, mas parece que, na juventude, escreveu uma obra de filosofia que talvez não lhe tenha agradado de todo e que circulou sem o seu conhecimento. Apesar disso, o livro o tornou famoso na distante Atenas. Platão relata que Parmênides e Zenão visitaram a cidade juntos por volta de 450a.C. e ali conheceram o jovem Sócrates. Zenão permaneceu em Atenas algum tempo, cobrando de nobres pelo privilégio de ouvi-lo discursar. Segundo a lenda, ao retornar a Eléia envolveu-se em política e tramou a derrubada de Nearco, tirano da cidade. Antes que os conspiradores pudessem agir, Zenão foi preso e torturado até a morte por sua traição. Várias histórias narram seu interrogatório. Em uma é dito que para não trair seus cúmplices, apontou os amigos do tirano como seus companheiros de conspiração. Em outras, que cortou fora a própria língua com uma dentada e cuspiu-a sobre Nearco, ou até que saltou sobre o tirano e lhe arrancou o nariz com uma dentada. Essas histórias são menos vibrantes que a própria filosofia de Zenão.
Ele queria provar que a multiplicidade exibida pelo mundo era uma ilusão e que a realidade se compunha de uma unicidade eternamente imutável. Repudiava qualquer noção de tempo, movimento ou qualquer tipo de pluralidade entre os objetos. Combatia nossas noções comuns de espaço e tempo admitindo sua verdade e levando-a às últimas conseqüências. O resultado deles se perdeu, mas três, em particular, vêm dando dor de cabeça aos filósofos e matemáticos há dois milênios e meio.
O paradoxo mais famoso de Zenão é a história de uma corrida entre Aquiles e a tartaruga. Sendo Aquiles um corredor muito rápido, é concedida à tartaruga uma vantagem de dez metros. Isso pode não parecer extremamente generoso com a tartaruga, mas revela-se suficiente para lhe garantir a vitória. Quando a corrida começa, Aquiles larga rapidamente e logo recupera aqueles dez metros. A essa altura a tartaruga conseguiu avançar apenas um metro, que Aquiles cobre então num único salto. Agora, contudo, a tartaruga conseguiu avançar mais quatro centímetros. Acelerando, Aquiles perfaz essa distância, só para descobrir que a tartaruga se adiantou mais um centímetro. Quando Aquiles transpõe esse centímetro, a tartaruga terá avançado em mais alguma distância ainda que muito pequena. Zenão sustenta que, por mais rapidamente que Aquiles corra, nunca conseguirá ultrapassar sua adversária, porque para tanto precisaria primeiro alcança-la. E isso jamais poderá fazer, porque, desde que leve algum tempo – por menor que seja - para emparelhar com a tartaruga, esta terá sempre conseguido, a duras penas, mover-se uma fração da distância. Embora se torne cada vez mais curta, a distância que separa Aquiles da sua rival jamais poderá se reduzir a nada. A tartaruga, portanto, permanecerá para sempre na dianteira.
Como se isso não fosse suficientemente frustrante para Aquiles, as coisas ficam ainda piores para ele no paradoxo da pista de corridas. Para chegar ao fim de uma pista, Aquiles teria primeiro de atingir a marca da metade do percurso. Depois disso, a distância restante teria sua própria marca média a ser atingida. O quarto final poderia ser igualmente dividido em dois, e assim por diante, ao que parece, para todo o sempre. Para atingir a linha de chegada, Aquiles teria de percorrer um número infinito de divisões da pista. Uma vez que cada um desses segmentos deve compreender alguma distância e sua transposição deve demandar algum tempo, por minúsculo que seja, ele precisará da eternidade para completar o percurso. Por menor que cada segmento seja, um número infinito deles resulta numa distância infinita. Feliz ou infelizmente, Aquiles não precisará ter medo de ter que correr até o fim dos tempos, já que, pelo mesmo raciocínio, jamais conseguirá, sequer começar a correr. Como a primeira metade da pista também pode ser dividida ad infinitum, antes de transpor a metade da distância Aquiles terá de transpor um quarto dela, e antes disso um oitavo e assim por diante... Sendo essas frações intermináveis, ele precisará literalmente da eternidade para sequer dar a largada.
Mas esses problemas podem ser deixados de lado, porque, segundo o paradoxo da flecha, nada se move jamais. O vôo de uma flecha pode ser dividido em instantes que sejam a menor medida possível do tempo. Se a flecha se move durante um desses instantes, isso significa que começa o instante num lugar e o termina em outro. Mas nesse caso, não estaríamos absolutamente falando de um instante, porque teria sido possível dividi-lo. Uma vez que tenhamos descoberto um instante verdadeiro – um lapso que por definição não pode ser mais dividido – temos uma divisão do tempo em que nenhum movimento pode ocorrer. Isso significa, no entanto, que a flecha jamais pode se mover, já que nenhuma quantidade de não-movimento pode constituir movimento. Como não se move em nenhum ponto isolado em seu vôo, a flecha não se move ao longo de todo o vôo.
O paradoxo da flecha é o que pode ser enfrentado mais facilmente. Movimento requer tempo, e assim não surpreende que, se eliminamos o tempo e passamos a falar em instantes, eliminamos também o movimento. Embora a flecha possa não se mover em nenhum instante dado, ela ainda poderá se mover se o movimento for definido como o aparecimento de uma coisa num lugar diferente num ponto posterior no tempo. Os paradoxos que envolvem Aquiles e a tartaruga são mais difíceis. Mesmo assim, podem ser evitados, sustentou Zenão, se rejeitarmos a própria noção de divisibilidade. Se isso ofende ao senso comum, tanto pior para o senso comum. É claramente insatisfatório, porém, substituir um absurdo por outro, como faz Zenão. Felizmente, podemos escapar do apuro usando ferramentas matemáticas que não estavam à disposição do filósofo e de seus contemporâneos no século V a.C. Hoje sabemos que é um erro supor que uma distância composta de um número infinito de partes deve ser ela própria infinita. Se construíssemos uma série somando ½ a ¼ a 1/8 e assim por diante, indefinidamente, a maioria dos matemáticos declararia que o total seria um, não a infinidade. Não há nada de impossível, portanto, em que o espaço seja infinitamente divisível. Tampouco há problema em se transpor o número infinito de segmentos de uma pista de corridas num tempo finito. Assim, por esse raciocínio, Aquiles pode deixar seu ponto de partida e ultrapassar a tartaruga sem impedimentos, até ser ferido no calcanhar por uma flecha certeira.
Zenão era “forte” no uso da reductio porque tomava uma série de crenças e delas derivava impossibilidades lógicas. Mas não é preciso produzir paradoxos para permanecer fiel ao método. Reduções “mais fracas” podem envolver conseqüências, se não impossíveis, simplesmente inaceitáveis. Um filósofo favorável à vida, por exemplo, poderia rejeitar qualquer sistema moral cujos princípios implicassem a defesa do aborto, mesmo que essa defesa não fosse explicitamente formulada. Ou um teórico político poderia rejeitar o comunismo revolucionário porque este aprova a morte de inocentes como meio justificável para um fim, ainda que seus adeptos não sustentem o direito de matar como um princípio fundamental. Nesse nível, a reductio ad absurdum é pouco mais que uma técnica de argumentação, já que o que é absurdo para um homem pode não parecer tão disparatado para outro. A questão vai além de matérias de gosto moral – como o aborto – para penetrar nas puramente lógicas. O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) afirmou que roubar era errado porque tal comportamento não poderia ser universalizado. Ou seja, se todos saíssem por aí roubando, isso corroeria a convenção da propriedade, que é, para início de conversa, o que torna o roubo possível. Essa reductio não convenceria ninguém, muito menos um ladrão. Argumento semelhante foi proposto para Yossarian, o herói do livro Catch-22 [Ardil-22], de Joseph Heltler, quando ele se recusou a participar de qualquer outro ataque aéreo. “Que aconteceria”, perguntou-lhe seu oficial comandante, “se todo mundo se recusasse a voar?” “Nesse caso eu seria um idiota completo se fizesse outra coisa”, foi a resposta de Yossarian. A eficácia da reductio ad absurdum depende em grande parte de noções partilhadas do absurdo.
Igualmente importante para todos os tipos de reductio é a questão: é ou não admissível que os absurdos que urgem em situações extremas se choquem com crenças válidas em circunstâncias comuns? Por exemplo, muita gente não vê nenhum mal no uso ocasional de maconha e acredita que a lei contra a droga viola a liberdade individual. O grupo de pressão antidrogas costuma rebater alegando que se a lei permitisse às pessoas fazer o que bem entendessem, a sociedade se desagregaria. Isso pode sem dúvida ser verdade, mas é uma conseqüência muito distante do ato de fumar um baseado ocasional (a análise aqui é do argumento, e não uma defesa do uso da maconha). Na vida comum, em geral a acusação de que alguém está levando uma questão a extremos é suficiente para neutralizar a força de uma reductio. Na maioria das vezes, quanto mais uma reductio é levada ao extremo, menos nos sentimos obrigados a considerar seu resultado final. Isso pode ser fruto mais de cinismo que de credulidade, já que talvez não exista nenhuma posição que não seja redutível a uma forma ou outra de absurdo.
Outra defesa contra a reductio consiste em afirmar que nossas crenças não são de natureza filosófica. Isto é, dizem respeito a preocupações específicas e não a generalidades elevadas. Assim, uma explicação de homofobia não precisa se aplicar a todos os outros tipos de ódio. O que é verdade em relação aos homófobos pode não o ser em relação a sectários brancos movidos por racismo encarniçado, embora nada impeça que as duas coisas sejam ocasionalmente uma só. No entanto, defender uma explicação é também defender o método usado para construí-la. Em nosso exemplo original, trata-se do princípio duvidoso de que todo ódio é na verdade ódio a si mesmo. Em última análise, para que uma reductio funcione, é preciso que ambos os lados concordem quanto a que conclusões devem ser consideradas “inaceitáveis”. Por isso mesmo, é pouco provável que essa abordagem venha algum dia a convencer os defensores da legalização das drogas leves.
Não deixe de ler o artigo A INQUIRIÇÃO SOCRÁTICA que será postado em breve
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